Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Revéillon Déjà Vu



Às vezes fico pensando em como é pensar;
Vai-se ao longe numa pequena e distante viagem;
Agora, por exemplo, pensava que mais um ano (ou menos) passou.
Alguns de nossos problemas tornaram a repetir-se. Outros até aumentaram...
Mas coisas muito boas também aconteceram; Afinal, vive-se para quê?
É nisso que dá o pensar. Voltar no tempo e tentar repetir o que deu certo.
Aí vem o final de 2013... Não como o de 2000 com certeza, no “bug” do milênio;
Na virada do século, mesmo que ela só tenha acontecido em 2001, é claro...
Mas isso é o tal de Ano Velho.
Pois já no Ano Novo, não se quer uma vida nova e, sim, a mesma com reparos pontuais                               em nossos principais defeitos de fabricação...
Um novo pensar.
Esses dias, por exemplo, tomei um rico de um banho de rio (na sombra!).
Foi simples e prazeroso, como só as coisas simples podem ser.
Porém, outros seres, os não-tão-pensantes-assim, haviam deixado para trás, desde fraldas                        até garrafas de vidro e pacotes de bolacha e picolé. Lixo... Estou falando das pessoas...
São do tipo... Vidas velhas, entende?
 Aí fico eu, pensando e viajando longe, até onde as pessoas não precisariam nem serem educadas; tipo: o vivente já nasceria sabendo... Motoristas respeitariam os pedestres nas esquinas, as pessoas cuidando de suas próprias vidas e, ao mesmo tempo, colaborando       para com as outras, sem qualquer tipo de interesse e distinção; dando preferência aos      idosos, crianças e mulheres. Tratando de suas próprias vidas. Só isso.
Que tenhamos todos, um Ano Novo em nossas novas vidas velhas; buscando sentir-se bem.
O pensar é o sentir e vice-versa. Sinta até onde o leva seu pensar.
E agradeça ainda estar vivo por aí, peleando, matando seus leões de estimação todos os dias;
Pois escrevo para você, que vive a cada dia duvidando de si mesmo, desafiando-se; arriscando sua cabeça pelas coisas em que acredita; fazendo, ao invés de olhar os outros fazerem.
Que 2014 seja o que tiver que ser! Que façamos as coisas acontecerem para nós.
Que pensemos e sentimos.
Não necessariamente nessa ordem.
E, quando tudo tornar a repetir-se;
Saibamos que algo de errado está acontecendo;
À não ser que só as coisas boas é que se repetem;
Aí meu irmão...
É um abraço.
Venha 2014.
Vou lhe usar.
Se você deixar.
Pense e sinta.
Pois uns não pensam direito.
E outros jamais serão.
Que em 2014, você seja então.
Apenas isso.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

NUNUNHA CABEÇÃO







Cabeção. Óculos enormes. Cabelos desgrenhados. Olhos que consumiam o visto. Braços magros e mãos finas. Dedos compridos de lambuzar nos textos e chupar o dedo.
Ele não viu a menina que entrou na biblioteca. Toda a biblioteca viu. Simplesmente linda. Mas ele não viu. Cravado estava no livro. Plantado de corpo e alma no seu delírio de leitor fanático.
A professora Ritinha havia inclusive feito algumas observações sobre o comportamento anormal do menino, “Esse guri só quer saber de ler. Não faz mais nada, só lê.” E esse “só ler” era dito com uma espécie de frustração. Ao que a diretora da escola respondia que “se ele está indo bem nas outras matérias...” e estava. Era uma espécie de referência na sala de aula. Sabia dos deuses gregos, romanos e nórdicos pelos gibis, conhecia as regiões e costumes de outros povos lendo as revistas geográficas do pai, entendia de física e química porque lia um almanaque antigo de ciências que ganhara de um professor amigo, mas sua predileção eram os romances. Lia tudo. Tudo.
Mas era feio. Era esquisito. As crianças o procuravam só quando precisavam ajuda em alguma disciplina. De resto era Nununha Cabeção pra lá, um tapão na orelha, Nununha Cabeção pra cá, um chute nas canelas e um empurrão. Não reclamava.
O nome era Francisco Nunes, mas herdara o apelido de Nununha do avô, “seu” Nununha, o velho da banca da esquina. Diziam até que essa mania de “comer” letras vinha do avô. Uma maldição.
Enquanto os amigos jogavam bola e exercitavam o corpo, Nununha, de mirrado corpo exercitava o cérebro e a imaginação.
E tudo era quixotesco. Dramas. Comedias, tragédias.
Mas não viu a menina. E ela o viu. Era trabalho de escola. Pesquisa sobre um escritor. Ela era de outra turma. Mais adiantada.
Ouvira falar do Nununha. Entre troça, espanto e admiração, era propagada a inteligência e a bizarrice do menino.
As vezes no recreio, passava horas acompanhando as formigas carregadeiras, olhar atento, quase tentando uma comunicação que fosse capaz de resolver as dúvidas que lhe vinha na cabeça. “Por que a fila”, “como tanto peso?” “o que diziam uma para as outras quando se encontrava?” e assim ficava até o sino tocar ou alguém lhe dar um empurrão e dizer que Acabara o recreio.
Levantava do chão e ia  para a sala. Não via ninguém. Sua classe era seu ninho. Nem o barulho dos colegas conseguia irritá-lo. Quando uma bolinha de papel acertou seu olho teve vontade de chorar, mas logo lembrou de outras histórias, de heróis que eram atingidos por balas, flechas, e pedras e resistiam bravamente. Monstros haviam em todos os lugares. Acionou rapidamente o botão que trancava as escotilhas da nave e fugiu daquele planeta hostil. Flash Gordon.
Ela era bonita. E o namorado a observava sorrindo da janela. A menina sentou em frente ao herói. Sansão prestes a sofrer nas mãos de Dalila. “Oi?” e o inferno daquele dia em diante começara. Seus olhos de traça pela primeira vez avistaram algo que merecia atenção além dos livros e letras. Ela sorriu, disse que ele era bonito, que era interessante. Que queria conhecê-lo melhor. Que seu nome era Estela. “Ele pensou Estrela.” E um coração antes de papel e tinta preta agora batia assustado e  estranhamente afoito. A mão dela sobre a sua. Quente, pulsante. Galáxias que se tocavam. Queria chorar. Pela primeira vez quis chorar. Ela levantou-o pelo braço, inocente. Ingênuo. O sorriso do outro na janela. Nenhuma leitura conseguia avisá-lo neste momento do que o aguardava. Ao transpor a porta. Toda a escola. Dois lados. Um corredor. Gritos e insultos. Pontas-pé, tapas, empurrões, ofensas, gargalhadas e os olhos dele sem saber o que acontecia. Procuravam a menina, os óculos no chão. Quebrados, chutados, pisoteados. A pasta, os livros. Destruição. No fundo do corredor, abraçados Estela e o namorado. Risadas. Um tombo. Uma vergonha. Uma vontade de morte.
Aos trinta e dois estava preso. Aos quarenta e dois enterrado no cemitério da família.
Ainda hoje quando alguns passavam pelo local lembravam com horror do Nununha Cabeção, o menino que pusera fogo na escola.
Chamas enormes. Quentes. Infernais. A cidade correndo como as formigas, mas não em fila. Desorganizados, horrorizados.
Ele esperou o Jonas sair de casa. Sabia que o menino não ia perder a festa.
“Qual o problema?” a resposta foi um golpe violento. O cabo de vassoura  partiu-se. E o Jonas caiu. Estela choraria muito. A cidade inteira ia chorar bastante.
Aos quarenta e dois anos decidiu que não queria mais. Deitou no catre da cela, tirou os óculos do rosto e dormiu. Desligou um botão que só ele sabia.
“Morreu” disseram.
Outros dizem que virou livro. Que a biblioteca ficou assombrada. Escutam livros serem folheados e essas coisas.
E uma estranha fila de formigas cortadeiras deu para atacar o acervo. Não há o que mate as danadas.
As vezes elas param e conversam. Dizem que o Nununha sabia o que diziam.


Ronie Von Rosa Martins