O
nome era Inácio. Da Silva Romão e Filho. O nome. Todo. E tudo era o nome. Respeito
e conhecimento. Dos outros todos. Do povo. Pois era mecânico. Das bicicletas
todas das cercanias. Duas rodas era com
ele. Sabia tudo. Tudo dos procedimentos de vida e morte das bicicletas. De todas.
Conhecia pelo barulho, pela cor, pela forma, pelo som da buzina ou sino. Era o conhecedor
das bicicletas. Seu Nácio das bicicletas. O famoso e bem quisto cidadão do
bairro das folhas baixas das árvores poucas da rua sem asfalto ou pedra. Seu
Nácio das bicicletas da Rua do Buraco.
Crente
em Deus. Da igreja e do padre. Mesmo que cada coisa fosse cada coisa. Pra ele
tudo era uma coisa só. Uma só coisa tudo. Tinha esse problema. Simplicidade em
demasia. Ingenuidade em doses cavalares. Mas era um homem bom.
Mulher
e dois filhos. Olga, Isildinho e Isaurino. A família. Casa razoável. Na esquina.
Casa em esquina era mais considerada. “Moro na esquina, bem ali... o dedo
apontando... na esquina.” Lugar de respeito e de poder. Os esqueletos das
bicicletas atirados ou pendurados pelas paredes da casa. Pneus e aros por todo
o lado. Borracha. Cheiro de pneu, cheiro de borracha.
Dona
Olga era trabalhadora. Casa, roupa, comida, merda do cachorrinho no pátio,
comidinha para o canário que nunca cantou nada. Nunca cantava na gaiola. O rádio
era maior, imenso. O som também. E afogava e angustiava o bichinho. Recusara a
cantar. Nem amarelo era mais. Cinza. E Olga. Sentada. Seu horário. Dela. Único.
Morria no sofá. No horário das palavras. Ditas pelos que podiam dizer. Palavras
livres. Livres de qualquer responsabilidade. Palavras faladas com o dedo. Em riste.
Apontando e julgando. Ela gostava. Dona
Olga. Isildinho também. Daquele horário. Era o momento de “aprender” as coisas.
“Viu só? Falava Dona Olga, agarrando forte o ombro de Isildinho. “Viu só, viu
só... é isso que eu acho. É isso que eu acho. Que mulher inteligente!”
A
televisão era o rosto. Sério e respeitável da verdade. E falava de justiça. De força.
De como a comunidade devia reagir. Aos bandidos. “Essa cambada.” Prender,
bater, amarrar com arame. Mereciam. Eram os maus. A comunidade era do bem. Os bons.
Era a guerra. O povo devia estar armado. Pra resistir aos bandidos. Pra matar
os bandidos.
Inácio
era calmo. Como as bicicletas. Só se moviam se houvesse uma força atuando nos
pedais. Outra força. Um poder exterior. E foi assim. E era assim. Enterrado nos
pedais e nas correntes. Correias. Não havia bandidos, não havia o resto. Só bicicletas,
selins, quadros, guidões, marchas. Tinta, óleo. Borracha. Muita borracha. Não havia
além disso. Da bicicleta e do que ela lhe dava. Seu próprio nome, alcunha. Poder.
Isaurino
era grande. De futebol jogador e apreciador. Gritava, xingava. Tinha posição,
time, torcida. Organizado. Chorava segurando o símbolo do time, seu símbolo de
força, de identidade, de pertencimento, de importância. Era quem era pelo fato
de ser torcedor de seu time. Sua igreja. Seu discurso. Saurinho como os amigos
chamavam, gritavam. Gordo e suado. Sorridente. Dente branco. Olho branco
brilhante. Sempre feliz. E bêbado. Seu Nácio não bebia. Água sim. Apenas.
Saurinho todas. O álcool. E já não sorria. Ameaçava e brigava.
Foi
assim. Que todos. A família. Matou. Trucidou.
Ouviram
a voz da televisão. Isildinho na Internet confirmou o inconfimável. E mataram. Já
não eram a família. Eram as feras. Eles e os outros. Tijolo e pedra. E palavras
mais pesadas. Agudas. E sangue e desespero. Dona Olga de pedra na mão. Saurinho
gritando e arrastando o corpo com fúria e raiva e álcool, Isaurinho saltando e
ofendendo. Seu Inácio cruzando por cima. Com rodas. Bicicleta. Sua arma, comida
e vida.
A
mulher não era. Outra. Quando a polícia chegou, dona Olga ainda batia, clava de
madeira, grunhia e chamava de puta, o sangue na arma, no cadáver e no olho.
Enquanto
isso na casa de um vizinho. A tv ligada. E uma voz feminina séria e respeitosa falava
“ainda” em justiça. E em mãos.
E
enquanto era levado pela polícia seu Nácio das bicicletas não entendia nada.
Nem dona Olga, muito menos Isildinho... Isaurinho vomitava.