Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O corpo na janela

 


Há um mundo que não é mais. Não é mais o mesmo. O mundo. Aquele de sorrisos e dores conhecidas. Não. Não é mais o mundo. É outro. É um mundo distante ainda. Da janela. É um mundo pela janela.

O olhar se alimenta desse mundo, mais do que qualquer coisa. Procura no mínimo. Vê o que antes nunca viu. O olho agora é lanterna potente. Para alguns. Para outros não. Sem luz. Olho sem sol. Mesmo na janela ardente. Para alguns até mesmo o olhar murchou.

O mundo sempre foi perigoso. Mas o corpo enfrentava os perigos. No corte, no soco, no tombo... o corpo enfrentava as malvadezas do mundo... Presente. Ele estava lá para vencer ou perder. Atuante.

Neste novo mundo o corpo recua. Esconde-se. É invisível o inimigo. E não há o que fazer contra ele. O corpo perde, morre se extingue. Resta ao corpo o refúgio das janelas. E dos olhos nas janelas.

A rua é única e simplesmente a rua. Pedras,  casas, um cão feliz que passeia. Poucos carros. A rua é um silêncio que dói e atravessa a janela. Um silêncio que agride que busca a vida. Pela janela.

O cão perambula feliz nesse mundo estranho. Os pássaros não precisam de janelas. E seus movimentos causam inveja ao corpo e aos olhos presos pelas janelas.

O verde livre dos pés, das rodas, do veneno... Abanam para as janelas. O vento desse novo mundo é arriscado. Mas todos dariam um mês de suas vidas para correr e abrir os braços e voar. Ser pássaros. Pássaro sem pedra nem gaiola.

Atrás da janela somos pássaros. E é triste ser cativo e cantar.

O som das casas não para. Os filmes não param as lives não param.  Uma tentativa de enganar-nos que ainda temos movimentos. E temos. Temos um movimento estranho e compassado. Quase ritual.  E buscamos no desespero e na monotonia algo que nos de as asas do pássaro que se perde do olho. Longe os pássaros.

Pelas janelas os vultos se abanam constrangidos.  “tudo bem?”  e os sorrisos tentam modificar as faces. Duras faces.

A vida exubera. Toda a vida que não é humana.  A humana espera. Espera para ver  o estranho mundo que à espera.

Os livros se amontoam, uns lidos outros modificados de lugar. Ler não é fácil, sorrir não é fácil, respirar não é fácil nesse mundo.

O corpo é a casa. Os olhos brincam de ser o corpo pelas ruas. Percorrem esquinas ajudados pela memória, pelo costume... entram nas padarias, nas lojas, no mercado. Fechados os olhos  veem muito mais. O mergulho pelas imagens que ficaram é muito mais profundo.

E pela janela fechamos os olhos para ver o que éramos o que fazíamos. Alguns avaliam, questionam. Outros inclusive juram fazer tudo diferente. Outros, ajoelhados, rezam pra tudo ser como antes. Mesmo o Antes não ser ideal, ser injusto e cruel. Outros ainda esperam mais justiça e igualdade.  O mundo se regenera, se transforma, vibra na esperança e na dor de todos. Sismicamente o planeta modifica suas leis gerais, deixando claro que somos apenas mais uma espécie. Não a mais importante, não a melhor.  Somos apenas mais um tipo de vida diante de tanta vida.

Somos pequenos, as janelas nos dizem isso. Somos pequenos, nossas misérias nos afirmam isso. Mas somos vida. E a vida é um elemento em eterna transformação. Esperemos que quando as janelas abrirem-se, quando as portas forem finalmente abertas.... Outras criaturas  surjam para ver os pássaros e os cães.

Gente mais livre e feliz como os pássaros, gente mais simples como os cães.

Ronie Von Rosa Martins

 

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