Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

sexta-feira, 3 de abril de 2015

O velho que lia





Sábado. Na janela o sol não se intimidava com a tentativa de impenetrabilidade. Pelas frinchas dava jeito de atingir-lhe o corpo.
Na cama. O corpo permanecia. Largados os braços. Pernas também. Cobertas no desalinho do pesadelo. O escuro teimava em permanecer.
O despertador já havia gritado. O galo também. O mundo já havia gritado. E ele estava atrasado.
Atrasado para o grito do corpo.
No chão. O livro. A leitura que fizera à noite. Lia para espantar seus demônios. Armadilhas infalíveis para aprisionar criaturas das trevas. Abria o livro nas madrugadas e esperava que todos os seus medos se manifestassem. E os consumia em forma de texto. Palavra. Era um devorador de demônios. O maior de todos eles.
Aprisionava em seus livros todas as suas angústias.
E em sua pequena biblioteca, às vezes ouvia os sussurros e infâmias que os prisioneiros lhe endereçavam.
O mundo era muito estranho.
Velho. Tão velho quanto a quantidade de rugas que rizomaticamete envolviam toda a sua pele.
Já em pé. Sorvia o chimarrão tão quente e amargo. Apreciava a pequena bruma que se esvaia do calor da água e da erva da cuia. O cheiro... Solidão tem cheiro?
Caminhou até o quarto. Apanhou o livro do chão e cuidadosamente o colocou na estante.
A neta um dia lhe perguntou porque vivia sozinho “quem disse que estou só?” respondeu sorrindo. O filho, homem de certa obesidade aproximou-se tentando argumentar sobre os perigos de morar sozinho, questões de idade e limitações do corpo, e ele sorria. Quando o filho afastou-se. O velho pegou a menina no colo e contou-lhe as histórias de seus livros. Dos seus medos e angústias aprisionados nas linhas dos textos... os olhos brilhavam com a intensidade da admiração, surpresa e medo. “Eles estão presos?”
O sorriso do velho se abria. “Todos eles.”
“Mas e se eles fugirem?” “Às vezes acontece. Mas toda a noite eu os caço novamente e os apanho. E os guardo ali.” O dedo apontando para as estantes. O coração da menina pulsava. Os olhos esbugalhados faiscavam de excitação e temor.
Então o tempo e a morte vieram, e as flores, e as rezas, e as lágrimas e as dores.
E nestes interstícios da vida, quando a memória parece insistir em abrir uma brecha no muro da realidade e do presente, ela, a menina que agora já não era lembrava do avô.

E toda vez pela manhã quando ia observar o pequeno Diego. O filho. Levantava do chão o espesso livro de contos de fadas. “Cuidado mãe.” Ainda sonolento ele dizia. “Eles podem fugir.”

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