Não
durmo. É difícil. O corpo está sobrepujado. Estaria sofrendo a síndrome do
“pardal de coroa branca”? Sete dias por semana sem precisar dormir.
Fecho
os olhos, mas estou envenenado. O corpo já não reconhece nem o espaço nem o
tempo do descanso. Sob as pálpebras dois olhos insistentes resistem, ou melhor,
se entregam aos mecanismos de uma nova época. De um novo normal?
Jonathan
Crary na obra 24/7 Capitalismo tardio e
os fins do sono disserta sobre o assunto. Fico preocupado. Crary ao
introduzir o tema de seu livro já nos informa, lá na página dezesseis que
bastaria um período relativamente curto sem dormir para sermos induzidos,
inclusive, à psicose.
Penso
nas noites em que as séries, os filmes, as músicas, os livros tentam amenizar
minhas angústias. A internet, as redes sociais que “iluminam” toxicamente meus
óculos, olhos, cérebro e corpo. A cama é um martírio. E eis o problema...
Amenizam ou alimentam o problema?
“A
negação do sono é uma desapropriação violenta do eu por forças externas, é o
aniquilamento calculado de um indivíduo.” (CRARY, pag.16. 2016)
O
que aniquila o meu eu? A falta do sono ou tudo que não me deixa dormir? E o que
seria esse “tudo”? De que máquina infernal é produzida essa necessidade que
tenho de “aproveitar o tempo todo.”
Dormir seria uma fraqueza?
De
acordo com Crary, lá pelos meados do século XVII, o sono teria se afastado de
uma suposta posição estável que ocuparia nas concepções aristotélicas e
renascentistas já ultrapassadas. O sono seria incompatível, então, com uma
moderna noção de produtividade e racionalidade. Descartes, Hume e Locke seriam
alguns dos filósofos que desprezavam o sono por sua irrelevância para o
funcionamento da mente e para a busca do conhecimento. Consciência e vontade,
noções de utilidade, objetividade e ações em interesse próprio, de acordo com o
autor, teriam desvalorizado a função do sono. (Crary, pag.19. 2016).
Penso
em minhas atividades como professor. E como acabo deixando que a noite, e sua
suposta calmaria, venha ao meu socorro. E como a internet “ocupa”
sistematicamente meu tempo de vida. E quando penso em internet penso logo em
redes sociais, e diretamente e “logicamente” em Facebook. Conversar, ver, ler
sobre tudo e todos... e então me vem uma frase de Evgeny Morozov, do livro Big Tech, a ascensão dos dados e a morte da
política. “O Facebook está interessado em ‘inclusão digital’ do mesmo modo
que os agiotas se interessam pela ‘inclusão financeira’ – ou seja, em função do
dinheiro.” (MOROZOV, p.55. 2018)
Tudo
é dinheiro e poder. Ou poder e dinheiro. “No paradigma neoliberal globalista,
dormir é, acima de tudo, para os fracos.”(CRARY, p.23. 2016)
Somos
insistentemente “carregados” com conceitos de vida que institucionalizam esse
nosso “novo” normal. E não é só pela ameaça do coronavírus. O covid-19 faz
parte do grande pacote que escolhemos como nosso presente. Presente aqui como
atualidade, mas também como algo que se dá a alguém.
Se
o sono ainda não conseguiu ser colonizado de forma completa pelo capital, nossa
forma de ver o mundo já foi. Esse tema da imagem que acaba sendo colonizada
pelos algoritmos e pelos interesses das grandes corporações do ramo, é muito
bem colocado pela autora brasileira Gissele Beiguelman na obra Políticas da imagem, vigilância e
resistência na dadosfera. É dela o termo “eugenia algorítmica do olhar”
(BEIGUELMAN, p.136. 2021) De acordo a autora, nossas formas de ver estariam
tão afetadas pelos algoritmos e pela política pela qual são produzidos, que até
a nossa forma de entendermos nossa memória estaria sendo modificada através da
massificação e padronização da imagem nas redes sociais, internet e aplicativos
que manipulam essas mesmas imagens.
Enquanto
escrevo esse texto, escuto “I’ve got a woman”
de Ray Charles. Não escolhi a
música, nem o cantor. Um aplicativo de som, através do meu acesso, meus dados,
formulou uma playlist do “meu gosto”. E é assustador. Tudo o que somos,
gostamos, lemos, dizemos... tudo está na REDE.
E a rede suga todos os meus
dados. O sono talvez interrompesse um pouco essa vampiragem. Mas os dentes
sedentos do capital e da grande BIG TECH não
estão nem um pouco interessados em pausas para o lucro. O sono nesse novo
paradigma é o inimigo do capital e interromperia sistematicamente a grande
alimentação de dados que garante o poder das grandes empresas de tecnologia.
Morozov lista as cinco maiores, que seriam Apple, Google, Facebook, Microsoft
(p.147). Só o sono resiste ao ataque insidioso do Big Data. Alguns ainda
resistem. Sinto-me fraco, e às vezes acho que sou apenas um grande conjunto de
dados, como a carne de um animal dividida por partes e vendida nos
açougues. Como ser mais “humano”? Talvez
dormindo e sonhando fora dos limites do algoritmo e do interesse do
capital. Tenho me esforçado em cansar o
corpo para facilitar o abraço do sono. Ainda está difícil. Termino esse texto
com a expectativa de tomar um chimarrão olhando para as árvores do meu vizinho.
É quase angustiante evitar ligar um celular, uma TV, o computador.. Se o medo
do coronavírus nos impôs essa condição de resguardo, também, de certo modo
intensificou nossa submissão às grandes e multimilionárias empresas de
tecnologia.
Referências
BEIGUELMAN,
Giselle. Políticas da imagem, vigilância e resistência na dadosfera. São
Paulo.UBU. 2021.
CRARY,
Jonathan. 24/7, Capitalismo Tardio e os fins do sono. São Paulo. UBU. 2016.
MOROZOV,
Evgeny. Big Tech, A ascenção dos dados e a morte da política. São Paulo.UBU.
2018.