O fim do
inverno traz novos ares de alegria. Recordações de divertidas primaveras no meu
tempo de guri. Nos anos setenta, as compras não vinham em saquinhos plásticos
ecologicamente incorretos como hoje, mas em embrulhos de papel amarrados com
linhas grossas de algodão. Aquela embalagem servia para carregar roupas,
remédios, alimentos. Desfeitos os embrulhos, o cordão e o papel não iam
imediatamente para o lixo. Na prática e de forma inconsciente, os moleques da
época já experimentavam a sustentabilidade.
Os cordões e
papéis eram reaproveitados no brinquedo favorito: A pipa. No Rio Grande do Sul
chama-se “pandorga”. Não comprávamos os brinquedos prontos. Fabricávamos em
casa. Dos embrulhos desfeitos, eu pegava os papéis encerados de pão, mais
resistentes do que o papel jornal. A estrutura da pandorga era de varetas finas
de taquara (bambú), amarradas com os cordões dos embrulhos. O papel era colado
nas varetas com grude, cola artesanal feita com farinha de trigo. A água
misturada ao glúten formava o gel viscoso que bem substituía a cola Tenaz.
A pandorga
também tinha um rabo, feito de retalhos de pano. Era o peso dele que mantinha o
brinquedo estabilizado no céu. Paradinho. O papagaio só decolava em dias de
vento forte, o que era comum no clima temperado do sul. Uma brisa, não servia.
Uma vez no
céu, a pandorga despertava euforias. Para os mais racionais, o sucesso de um
projeto bem elaborado e executado... O requinte tecnológico era o “roncador”.
Um pedaço de papel solto de um lado e preso a uma linha do outro, que tremulava
e emitia um ruído forte cada vez que se puxava a pandorga com força.
“vruuummmm... vruuummmm”. Parecia um pequeno motor!
Para os mais
emotivos, a posição privilegiada da pandorga estabilizada no ar despertava
variadas divagações. A possibilidade de voar... A curiosidade em ver a
paisagem do alto... A própria estrela sob domínio da mão... A imaginação
querendo arrebentar a linha e seguir para além do horizonte...
O que menos
passava em nossas cabeças infantis era guerrear! Uma pipa derrubar a outra?
Isso não era brincadeira de bom gosto nem inocente. As pipas brancas (todo o
pão vinha em papel branco),lado a lado. Cada uma com seu sonho respeitoso! E a
paz era garantida pela linha de algodão. Puro. Sem misturas. Os cordões dos embrulhos
eram emendados uns aos outros. Só quem possuía melhores condições financeiras
podia comprar um rolo inteiro, com 100 metros de linha nova.
A gurizada
do meu tempo não achava graça em destruir o brinquedo do outro em guerras de
pipas com linhas cortantes. Isso não existia no meu grupo de amigos e não
lembro de ter visto tal brincadeira perigosa durante minha infância no Rio
Grande do Sul. Era um tempo de pais presentes, sempre alertas às nossas
possíveis inconsequências.
Logo que me
mudei para o Rio de Janeiro, há vinte anos, percebi que as pipas daqui eram
diferentes no jeito e no conceito. No clima subtropical venta menos. As
estruturas são bem menores, mais leves, coloridas e inquietas. Mas o que mais
assusta é o uso frequente da mortal linha cortante. Nas áreas mais pobres da
cidade, me assombrou ver o céu infestado de pipas conduzidas não só por
crianças mas por adolescentes e até adultos viciados em infância... E algo
mais!
Hoje. sempre
que um ciclista, motociclista ou “homem asa” vira notícia após ser degolado por
uma linha assassina, aumenta minha certeza de que as pipas não são mais
pacíficas. O tempo de ingenuidade voou para longe, emaranhado no rabo de pipas
perdidas em dia de vendaval. Foram pervertidas pela violência. Viraram armas no meio dos "pipas voadas". Uma “peça”
perigosa que dispara navalhas perdidas.
Marcelo coelho é jornalista e músico. Nasceu em Santa Maria mas cresceu e pegou gosto pelas artes e a comunicação em Pedro Osório. Há 20 anos vive no Rio de Janeiro onde possui uma produtora de conteúdos audiovisuais que presta serviços para vários meios de comunicação.
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