Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Rodar

Caminhar é bom. Rodar é diferente. Nem tão rápido. Medida certa, tanto lenta quanto no furor do vento. O movimento.
É do coração... e das pernas que cansam numa alegria satisfeita. Simetria com chão, estrada e sombra. A sombra segue sempre e o olho à sombra. Segue também. E é o tempo da roda. Movida pela vontade. Músculo e paisagem. Pois o que se vê também é a bicicleta, e o passeio, e a passagem e o movimento todo. E o vento. E o sol.
O rosto é visto e a voz ouvida. Do outro que no contrário movimento faz que fica e continua em outro ritmo.  Os carros não contam. Frios e limpos. Rápidos e cheirando a gasolina. Ovos de lata que chocam as vaidades de seus motoristas. Que nada vêem. Embevecidos que estão por seus próprios reflexos que interpretam importâncias para pequenos espelhos. Os carros não contam.
Contam as árvores todas e a grama que nasce. E a roda que na velocidade exata percebe um verde que se singulariza de outros tantos verdes que já não são os mesmos. Nem os sorrisos. Diferentes todos. E as caras fechadas. Todas diferentes. E belas. A visão libertada de janelas. Olhos que vêem, mesmo no precipitar das duas finas rodas, rugas e vidas que se enredam, se enroscam...
Há também o som. Ou o fone e a escolha sonora. Música para rodar. Música para se perder para além do asfalto. Fugir do asfalto. No chão e no buraco. Deslizar. Fluido. Parar para atravessar a tartaruga, vislumbrar o sofá antigo e vermelho jogado inconseqüentemente no pequeno riacho, que serve de assento para todos os fantasmas e criaturas do campo. Se o alcançasse, também descansaria alguns momentos ali. Mas, agora, é templo sagrado de mistérios e ninho. De pássaros ou cobras. Somos todos. Um pouco de cada. Cobras e pássaros. Voamos e rastejamos. Então rodar. Mesmo que o braço canse e a perna chore. O mundo está esperando. Mesmo o pequeno espaço que conseguimos alcançar. A quantidade de terra que conseguimos atravessar. A ladeira que nos ameaça e se insinua. E o pneu que murcha. E as costas que cansam.

É o espaço e o tempo outro. Longe ficam o resto todo. Prisões e apreensões sociais, vaidades e obrigações, deveres aparências. Só a sombra aprendendo a ser nada. A bicicleta e o homem. Metamorfose de carne e metal na construção interessante de um nada necessário. Deserto. Repleto de tantas coisas, mas sempre vazio. Aberto para todos os caminhos impossíveis.