Sábado. Na janela o sol
não se intimidava com a tentativa de impenetrabilidade. Pelas frinchas dava
jeito de atingir-lhe o corpo.
Na cama. O corpo
permanecia. Largados os braços. Pernas também. Cobertas no desalinho do
pesadelo. O escuro teimava em permanecer.
O despertador já havia
gritado. O galo também. O mundo já havia gritado. E ele estava atrasado.
Atrasado para o grito
do corpo.
No chão. O livro. A
leitura que fizera à noite. Lia para espantar seus demônios. Armadilhas
infalíveis para aprisionar criaturas das trevas. Abria o livro nas madrugadas e
esperava que todos os seus medos se manifestassem. E os consumia em forma de
texto. Palavra. Era um devorador de demônios. O maior de todos eles.
Aprisionava em seus
livros todas as suas angústias.
E em sua pequena
biblioteca, às vezes ouvia os sussurros e infâmias que os prisioneiros lhe
endereçavam.
O mundo era muito
estranho.
Velho. Tão velho quanto
a quantidade de rugas que rizomaticamete envolviam toda a sua pele.
Já em pé. Sorvia o chimarrão
tão quente e amargo. Apreciava a pequena bruma que se esvaia do calor da água e
da erva da cuia. O cheiro... Solidão tem cheiro?
Caminhou até o quarto.
Apanhou o livro do chão e cuidadosamente o colocou na estante.
A neta um dia lhe
perguntou porque vivia sozinho “quem disse que estou só?” respondeu sorrindo. O
filho, homem de certa obesidade aproximou-se tentando argumentar sobre os
perigos de morar sozinho, questões de idade e limitações do corpo, e ele
sorria. Quando o filho afastou-se. O velho pegou a menina no colo e contou-lhe
as histórias de seus livros. Dos seus medos e angústias aprisionados nas linhas
dos textos... os olhos brilhavam com a intensidade da admiração, surpresa e
medo. “Eles estão presos?”
O sorriso do velho se
abria. “Todos eles.”
“Mas e se eles
fugirem?” “Às vezes acontece. Mas toda a noite eu os caço novamente e os
apanho. E os guardo ali.” O dedo apontando para as estantes. O coração da
menina pulsava. Os olhos esbugalhados faiscavam de excitação e temor.
Então o tempo e a morte
vieram, e as flores, e as rezas, e as lágrimas e as dores.
E nestes interstícios
da vida, quando a memória parece insistir em abrir uma brecha no muro da
realidade e do presente, ela, a menina que agora já não era lembrava do avô.
E toda vez pela manhã
quando ia observar o pequeno Diego. O filho. Levantava do chão o espesso livro
de contos de fadas. “Cuidado mãe.” Ainda sonolento ele dizia. “Eles podem
fugir.”