Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Sono, tecnologia, capital e escravidão

 


 


 

Não durmo. É difícil. O corpo está sobrepujado. Estaria sofrendo a síndrome do “pardal de coroa branca”? Sete dias por semana sem precisar dormir.

Fecho os olhos, mas estou envenenado. O corpo já não reconhece nem o espaço nem o tempo do descanso. Sob as pálpebras dois olhos insistentes resistem, ou melhor, se entregam aos mecanismos de uma nova época. De um novo normal?

Jonathan Crary na obra 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono disserta sobre o assunto. Fico preocupado. Crary ao introduzir o tema de seu livro já nos informa, lá na página dezesseis que bastaria um período relativamente curto sem dormir para sermos induzidos, inclusive, à psicose.

Penso nas noites em que as séries, os filmes, as músicas, os livros tentam amenizar minhas angústias. A internet, as redes sociais que “iluminam” toxicamente meus óculos, olhos, cérebro e corpo. A cama é um martírio. E eis o problema... Amenizam ou alimentam o problema?

“A negação do sono é uma desapropriação violenta do eu por forças externas, é o aniquilamento calculado de um indivíduo.” (CRARY, pag.16. 2016)

O que aniquila o meu eu? A falta do sono ou tudo que não me deixa dormir? E o que seria esse “tudo”? De que máquina infernal é produzida essa necessidade que tenho de “aproveitar o tempo todo.”  Dormir seria uma fraqueza?

De acordo com Crary, lá pelos meados do século XVII, o sono teria se afastado de uma suposta posição estável que ocuparia nas concepções aristotélicas e renascentistas já ultrapassadas. O sono seria incompatível, então, com uma moderna noção de produtividade e racionalidade. Descartes, Hume e Locke seriam alguns dos filósofos que desprezavam o sono por sua irrelevância para o funcionamento da mente e para a busca do conhecimento. Consciência e vontade, noções de utilidade, objetividade e ações em interesse próprio, de acordo com o autor, teriam desvalorizado a função do sono. (Crary, pag.19. 2016).

Penso em minhas atividades como professor. E como acabo deixando que a noite, e sua suposta calmaria, venha ao meu socorro. E como a internet “ocupa” sistematicamente meu tempo de vida. E quando penso em internet penso logo em redes sociais, e diretamente e “logicamente” em Facebook. Conversar, ver, ler sobre tudo e todos... e então me vem uma frase de Evgeny Morozov, do livro Big Tech, a ascensão dos dados e a morte da política. “O Facebook está interessado em ‘inclusão digital’ do mesmo modo que os agiotas se interessam pela ‘inclusão financeira’ – ou seja, em função do dinheiro.” (MOROZOV, p.55. 2018)

Tudo é dinheiro e poder. Ou poder e dinheiro. “No paradigma neoliberal globalista, dormir é, acima de tudo, para os fracos.”(CRARY, p.23. 2016)

Somos insistentemente “carregados” com conceitos de vida que institucionalizam esse nosso “novo” normal. E não é só pela ameaça do coronavírus. O covid-19 faz parte do grande pacote que escolhemos como nosso presente. Presente aqui como atualidade, mas também como algo que se dá a alguém.

Se o sono ainda não conseguiu ser colonizado de forma completa pelo capital, nossa forma de ver o mundo já foi. Esse tema da imagem que acaba sendo colonizada pelos algoritmos e pelos interesses das grandes corporações do ramo, é muito bem colocado pela autora brasileira Gissele Beiguelman na obra Políticas da imagem, vigilância e resistência na dadosfera. É dela o termo “eugenia algorítmica do olhar” (BEIGUELMAN, p.136. 2021) De acordo a autora, nossas formas de ver estariam tão afetadas pelos algoritmos e pela política pela qual são produzidos, que até a nossa forma de entendermos nossa memória estaria sendo modificada através da massificação e padronização da imagem nas redes sociais, internet e aplicativos que manipulam essas mesmas imagens.

Enquanto escrevo esse texto, escuto “I’ve got a woman”  de Ray  Charles. Não escolhi a música, nem o cantor. Um aplicativo de som, através do meu acesso, meus dados, formulou uma playlist do “meu gosto”. E é assustador. Tudo o que somos, gostamos, lemos, dizemos... tudo está na REDE.  E a rede suga todos os meus dados. O sono talvez interrompesse um pouco essa vampiragem. Mas os dentes sedentos do capital e da grande BIG TECH não estão nem um pouco interessados em pausas para o lucro. O sono nesse novo paradigma é o inimigo do capital e interromperia sistematicamente a grande alimentação de dados que garante o poder das grandes empresas de tecnologia. Morozov lista as cinco maiores, que seriam Apple, Google, Facebook, Microsoft (p.147). Só o sono resiste ao ataque insidioso do Big Data. Alguns ainda resistem. Sinto-me fraco, e às vezes acho que sou apenas um grande conjunto de dados, como a carne de um animal dividida por partes e vendida nos açougues.  Como ser mais “humano”? Talvez dormindo e sonhando fora dos limites do algoritmo e do interesse do capital.  Tenho me esforçado em cansar o corpo para facilitar o abraço do sono. Ainda está difícil. Termino esse texto com a expectativa de tomar um chimarrão olhando para as árvores do meu vizinho. É quase angustiante evitar ligar um celular, uma TV, o computador.. Se o medo do coronavírus nos impôs essa condição de resguardo, também, de certo modo intensificou nossa submissão às grandes e multimilionárias empresas de tecnologia.

 

Referências

BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem, vigilância e resistência na dadosfera. São Paulo.UBU. 2021.

CRARY, Jonathan. 24/7, Capitalismo Tardio e os fins do sono. São Paulo. UBU. 2016.

MOROZOV, Evgeny. Big Tech, A ascenção dos dados e a morte da política. São Paulo.UBU. 2018.

 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O corpo na janela

 


Há um mundo que não é mais. Não é mais o mesmo. O mundo. Aquele de sorrisos e dores conhecidas. Não. Não é mais o mundo. É outro. É um mundo distante ainda. Da janela. É um mundo pela janela.

O olhar se alimenta desse mundo, mais do que qualquer coisa. Procura no mínimo. Vê o que antes nunca viu. O olho agora é lanterna potente. Para alguns. Para outros não. Sem luz. Olho sem sol. Mesmo na janela ardente. Para alguns até mesmo o olhar murchou.

O mundo sempre foi perigoso. Mas o corpo enfrentava os perigos. No corte, no soco, no tombo... o corpo enfrentava as malvadezas do mundo... Presente. Ele estava lá para vencer ou perder. Atuante.

Neste novo mundo o corpo recua. Esconde-se. É invisível o inimigo. E não há o que fazer contra ele. O corpo perde, morre se extingue. Resta ao corpo o refúgio das janelas. E dos olhos nas janelas.

A rua é única e simplesmente a rua. Pedras,  casas, um cão feliz que passeia. Poucos carros. A rua é um silêncio que dói e atravessa a janela. Um silêncio que agride que busca a vida. Pela janela.

O cão perambula feliz nesse mundo estranho. Os pássaros não precisam de janelas. E seus movimentos causam inveja ao corpo e aos olhos presos pelas janelas.

O verde livre dos pés, das rodas, do veneno... Abanam para as janelas. O vento desse novo mundo é arriscado. Mas todos dariam um mês de suas vidas para correr e abrir os braços e voar. Ser pássaros. Pássaro sem pedra nem gaiola.

Atrás da janela somos pássaros. E é triste ser cativo e cantar.

O som das casas não para. Os filmes não param as lives não param.  Uma tentativa de enganar-nos que ainda temos movimentos. E temos. Temos um movimento estranho e compassado. Quase ritual.  E buscamos no desespero e na monotonia algo que nos de as asas do pássaro que se perde do olho. Longe os pássaros.

Pelas janelas os vultos se abanam constrangidos.  “tudo bem?”  e os sorrisos tentam modificar as faces. Duras faces.

A vida exubera. Toda a vida que não é humana.  A humana espera. Espera para ver  o estranho mundo que à espera.

Os livros se amontoam, uns lidos outros modificados de lugar. Ler não é fácil, sorrir não é fácil, respirar não é fácil nesse mundo.

O corpo é a casa. Os olhos brincam de ser o corpo pelas ruas. Percorrem esquinas ajudados pela memória, pelo costume... entram nas padarias, nas lojas, no mercado. Fechados os olhos  veem muito mais. O mergulho pelas imagens que ficaram é muito mais profundo.

E pela janela fechamos os olhos para ver o que éramos o que fazíamos. Alguns avaliam, questionam. Outros inclusive juram fazer tudo diferente. Outros, ajoelhados, rezam pra tudo ser como antes. Mesmo o Antes não ser ideal, ser injusto e cruel. Outros ainda esperam mais justiça e igualdade.  O mundo se regenera, se transforma, vibra na esperança e na dor de todos. Sismicamente o planeta modifica suas leis gerais, deixando claro que somos apenas mais uma espécie. Não a mais importante, não a melhor.  Somos apenas mais um tipo de vida diante de tanta vida.

Somos pequenos, as janelas nos dizem isso. Somos pequenos, nossas misérias nos afirmam isso. Mas somos vida. E a vida é um elemento em eterna transformação. Esperemos que quando as janelas abrirem-se, quando as portas forem finalmente abertas.... Outras criaturas  surjam para ver os pássaros e os cães.

Gente mais livre e feliz como os pássaros, gente mais simples como os cães.

Ronie Von Rosa Martins

 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Resistindo




Há um vazio. Cheio de mim. Oco. Eu. O vazio?
Corpo. Porção de mim no todo vazio. Oco.
Copo. Porção de vinho. Em mim. Assim.
Em mim. Um pouco de todo o resto. Nada.
Todo o eu. Assim. Um copo. Oco. Vazio.
A unha não gruda na parede. Nem sustenta o peso do corpo que sofre. Arranha apenas a superfície do corpo. Que prende. Repreende.
A unha não rasga nem fura essa estrutura. Idêntica. Cara. Meu rosto que é o teu. Que é o nosso. Único rosto. De sorriso triste. De olhos desligados. Não, a unha não salva, nem solta. Nem defende a unha. Arranha apenas. Recusa, renega, reclama.
A unha reclama na parede do corpo. Reclama com fúria, em linhas de sangue. Os caminhos pra fuga. Pra festa. Pro vôo.
Mas o corpo não deixa. O corpo e seu peso. Sua ordem. Organismo. Cinismo do rosto. Estrutura. Consumação das paredes. A altura do muro.
Um murro? Nem murros nem unhas. Profunda e ancestral é a construção. Identidade, atitude, tradição, memória... Cimento duro.
Então vinho para regar o corpo que chora...e prende. Álcool pra encantar a estrutura que oscila. Drogas pra amaciar a fúria do corpo, seus limites, suas esquinas escuras, seus espaços frios suas masmorras...
Roupas pra cobrir a vergonha do corpo. Panos pra encobrir. Panos para produzir o próprio corpo. Muitos panos para a nova estética, para a produção do novo rosto. Cores também para alegrar e colonizar o corpo.
Marionete. Fantoche. O corpo dança a valsa que ouve e acredita. E no fundo. No vazio. Eu. Ou nós. E o oco do copo. E o vazio.
Então que venha a palavra. Que lavra o terreno baldio. Frases, vírgulas, verbos. Letras! Escreva, fale, comunique.
Repita o eco. Cante o refrão. Sorria! Abrace o irmão. Aceite...

Mas nas paredes do corpo, nas profundezas do corpo...  unhas....

segunda-feira, 18 de maio de 2015

RODAR


      

Caminhar é bom. Rodar é diferente. Nem tão rápido. Medida certa, tanto lenta quanto no furor do vento. O movimento.
É do coração... e das pernas que cansam numa alegria satisfeita. Simetria com chão, estrada e sombra. A sombra segue sempre e o olho à sombra. Segue também. E é o tempo da roda. Movida pela vontade. Músculo e paisagem. Pois o que se vê também é a bicicleta, e o passeio, e a passagem e o movimento todo. E o vento. E o sol.
O rosto é visto e a voz ouvida. Do outro que no contrário movimento faz que fica e continua em outro ritmo.  Os carros não contam. Frios e limpos. Rápidos e cheirando a gasolina. Ovos de lata que chocam as vaidades de seus motoristas. Que nada vêem. Embevecidos que estão por seus próprios reflexos que interpretam importâncias para pequenos espelhos. Os carros não contam.
Contam as árvores todas e a grama que nasce. E a roda que na velocidade exata percebe um verde que se singulariza de outros tantos verdes que já não são os mesmos. Nem os sorrisos. Diferentes todos. E as caras fechadas. Todas diferentes. E belas. A visão libertada de janelas. Olhos que vêem, mesmo no precipitar das duas finas rodas, rugas e vidas que se enredam, se enroscam...
Há também o som. Ou o fone e a escolha sonora. Música para rodar. Música para se perder para além do asfalto. Fugir do asfalto. No chão e no buraco. Deslizar. Fluido. Parar para atravessar a tartaruga, vislumbrar o sofá antigo e vermelho jogado inconseqüentemente no pequeno riacho, que serve de assento para todos os fantasmas e criaturas do campo. Se o alcançasse, também descansaria alguns momentos ali. Mas, agora, é templo sagrado de mistérios e ninho. De pássaros ou cobras. Somos todos. Um pouco de cada. Cobras e pássaros. Voamos e rastejamos. Então rodar. Mesmo que o braço canse e a perna chore. O mundo está esperando. Mesmo o pequeno espaço que conseguimos alcançar. A quantidade de terra que conseguimos atravessar. A ladeira que nos ameaça e se insinua. E o pneu que murcha. E as costas que cansam.

É o espaço e o tempo outro. Longe ficam o resto todo. Prisões e apreensões sociais, vaidades e obrigações, deveres aparências. Só a sombra aprendendo a ser nada. A bicicleta e o homem. Metamorfose de carne e metal na construção interessante de um nada necessário. Deserto. Repleto de tantas coisas, mas sempre vazio. Aberto para todos os caminhos impossíveis.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

O velho que lia





Sábado. Na janela o sol não se intimidava com a tentativa de impenetrabilidade. Pelas frinchas dava jeito de atingir-lhe o corpo.
Na cama. O corpo permanecia. Largados os braços. Pernas também. Cobertas no desalinho do pesadelo. O escuro teimava em permanecer.
O despertador já havia gritado. O galo também. O mundo já havia gritado. E ele estava atrasado.
Atrasado para o grito do corpo.
No chão. O livro. A leitura que fizera à noite. Lia para espantar seus demônios. Armadilhas infalíveis para aprisionar criaturas das trevas. Abria o livro nas madrugadas e esperava que todos os seus medos se manifestassem. E os consumia em forma de texto. Palavra. Era um devorador de demônios. O maior de todos eles.
Aprisionava em seus livros todas as suas angústias.
E em sua pequena biblioteca, às vezes ouvia os sussurros e infâmias que os prisioneiros lhe endereçavam.
O mundo era muito estranho.
Velho. Tão velho quanto a quantidade de rugas que rizomaticamete envolviam toda a sua pele.
Já em pé. Sorvia o chimarrão tão quente e amargo. Apreciava a pequena bruma que se esvaia do calor da água e da erva da cuia. O cheiro... Solidão tem cheiro?
Caminhou até o quarto. Apanhou o livro do chão e cuidadosamente o colocou na estante.
A neta um dia lhe perguntou porque vivia sozinho “quem disse que estou só?” respondeu sorrindo. O filho, homem de certa obesidade aproximou-se tentando argumentar sobre os perigos de morar sozinho, questões de idade e limitações do corpo, e ele sorria. Quando o filho afastou-se. O velho pegou a menina no colo e contou-lhe as histórias de seus livros. Dos seus medos e angústias aprisionados nas linhas dos textos... os olhos brilhavam com a intensidade da admiração, surpresa e medo. “Eles estão presos?”
O sorriso do velho se abria. “Todos eles.”
“Mas e se eles fugirem?” “Às vezes acontece. Mas toda a noite eu os caço novamente e os apanho. E os guardo ali.” O dedo apontando para as estantes. O coração da menina pulsava. Os olhos esbugalhados faiscavam de excitação e temor.
Então o tempo e a morte vieram, e as flores, e as rezas, e as lágrimas e as dores.
E nestes interstícios da vida, quando a memória parece insistir em abrir uma brecha no muro da realidade e do presente, ela, a menina que agora já não era lembrava do avô.

E toda vez pela manhã quando ia observar o pequeno Diego. O filho. Levantava do chão o espesso livro de contos de fadas. “Cuidado mãe.” Ainda sonolento ele dizia. “Eles podem fugir.”

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Pirulitos e velhos




Era  um fusca. Branco. Antigo. Dentro ela. Jovem. Bonita. Simpática. Na rua ele. Bicicleta e suor. Fone no ouvido. Música encharcando corpo e espírito. Corpo e espírito no corpo musical do momento. Um olhar. Simples e curto. Distante e tão incrivelmente perto.  E os carros, e as pessoas, e o tempo sem dó. Dor. E o nunca mais. E o para sempre.
O agora é diferente. Velho e sem bicicleta. Reivindicação dos joelhos. Das costas e do sem brilho dos olhos seus.  Agora sem fone nos ouvidos. Já não ouvia nada. O som era o da imagem. Inventava sons para o que via. E era o banco da praça. Sempre ali. Fugir sempre da casa. Ser velho exigia esse esforço. Para o bem de todos. Dele mesmo.
As bicicletas passavam. E ele ficava, mas ia também. Girava no cérebro, os pedais e o esforço. E lembrava do vento na cara. E o suor. Do coração batendo forte... pôs a mão no coração para sentir. Nada. Não sentia muita coisa.
O menino chupando um pirulito sentou ao lado. Olhos grandes de entender os velhos. "você tá triste?" Foi a pergunta. Os olhos de já não entender as crianças se voltaram pro menino. "Não." A criança levantou-se, tirou um pirulito do bolso e entregou. Correu para apagar sua imagem dos olhos antigos. Foi-se. Na mão o doce. Os olhos vetustos e a rua que ia e voltava sempre.
A senhora com bolsas passou e sorriu. O pirulito era cômico... ou trágico. E ele ainda não sabia o que fazer. Drama ou comédia? Não gostava muito de comédias, mas já estava velho demais para  dramas. Para o drama é necessário um coração vigoroso e cheio de sentimentos. Seco era o dele. Antigo.
Do outro lado da rua um casal discutia. O drama. Jovens perdidos em intensidades. Belo e estranho. Percebia-se a atração. Gesticulavam furiosos, mas pediam tudo um do outro. Amor? O que seria o amor. Ela fazia menção de ir. Ele segura-a do braço, moderava o tom da voz, suplicava. Ela chorava. Lágrimas e dizia palavras que a rua engolia. Se abraçavam. O beijo. Os corpos juntos. Vibração. E iam também. Mão ligadas, sorrisos envergonhados e felizes. Mais uma vez voltavam. Quantas vezes ele os vira ali. Discutindo e voltando? Várias.
Seria aquele o lugar ideal para resolverem seus problemas amorosos. Haveria um lugar adequado? Não sorriu. 
Uma leve brisa soprou algumas folhas caídas. Giraram no ar. Bailado contemporâneo e pós-moderno. Bailarinas bêbadas e alucinadas. Frenéticas. E caíram. Todas juntas. Mortas novamente. As folhas. E ele. Pensava que nunca aprendera a dançar. Acompanhar o ritmo de uma música. A potência de uma coreografia, ritual de acasalamento e namoro. Sempre fora difícil. Dançar era movimentar o corpo, vulneralizar-se para as forças inusitadas da música. E ele era pedra. Sempre fora. Duro. Tentara algumas vezes. Mas era um desastre. Parou. E ali estava.
O joelho doía. Sempre doía. E as costas.
E o pirulito doce. E um certo constrangimento. A infância parecia querer fazer troça de sua mão gelada e enrugada. Jogar fora? Não parecia certo. Esperar outra criança? Não seria confundido com esses miseráveis assediadores de menores? Jogar fora. Afinal ela já não havia ido? A infância?
Era colorido. E os olhos antigos e secos observavam. O colorido do doce. Seria o menino um anjo ou um demônio? As crianças sempre eram os  dois. Anjos e demônios. Ele fora. Medonho quando pequeno. Correr na rua. Jogar taco com os amigos. Bolinha de gude. Queria esboçar um sorriso. Mas não. A boca estava selada para esses prazeres. E nem a memória conseguia desenferrujar aquela porta antiga.

E então ele viu novamente. Não era o fusca de quarenta anos atrás. Era uma cadeira de rodas. Uma senhora grisalha empurrava outra um tanto mais velha. Rosto fechado. Olhos apertados pela claridade do sol. Triste. As duas. Mãe e filha. A filha e o fardo. O fardo e a filha. Ela sabia. Ser empurrada. Direcionada. A cadeira. Mesmo com rodas era uma limitação. "Tudo bem mãe?" A voz da filha. E a rua em silencio parecia conspirar para que ele ouvisse tudo. Ou nada. A outra mulher não respondeu. Triste. Mas os olhos se encontraram. Breve instante. Segundo. Nele um estremecimento. Algo estranhamente arrepiante. E rapidamente ele enfiou o pirulito na boca. Plástico e tudo. A cena congelou. Segundos, e o silêncio foi rompido pela gargalhada solta e desesperada da mulher. Em seguida ele se precipitou a rir também, com todas as suas rugas e dores. Estavam vivos pensou. E continuava a rir enquanto ouvia ao longe as gargalhadas da mulher na cadeira de rodas. Estavam vivos!