Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

quarta-feira, 19 de março de 2014

PONTO FINAL



Não. Ainda não era o que deveria. Ser. Seria das palavras. Seria o corpo e mente. A boca da palavra. Era isso. Queria isso. Queria ser verbo. Era imprescindível ser. O discurso. Todo ele. Em todos os gêneros. Em todos os tipos. Tinha que ser. Não lhe bastava o corpo exato. Medido em carne e osso e sangue. Queria o outro. Sangue negro da tinta. O sangue nobre do corpo do texto. Sangue que escorre pelas páginas e diz. Fala.
Mas não era. Era muito aquém disso. E daquilo. Era a lacuna e o espaço branco. O silêncio da palavra. O espaço do desespero do verbo que não se concretiza. Túmulo do verbo.
Frustração. Os dedos buscavam o ritual. Dança frenética em busca da magia que abrisse as portas para aquela outra dimensão. Noites de encantamentos em vão, de mandingas e bruxarias. Mas não havia nenhum portal, nem uma porta a ser aberta. E lhe era negada a entrada naquele mundo outro que tanto almejava.  O que conseguia nos textos eram espaços, lacunas, travas, tombos.
Sua mágica não era boa. Nem suficiente. E suas gavetas de bocas abertas esperavam a ração diária. Alimentação literária.
E sofria. Muito. Via o mundo através de palavras. As ações eram descritas, reescritas. Parecia estar sempre narrando sua própria vida. Produzindo artigos científicos de suas dores. Crônicas de suas mazelas particulares. O mundo era um texto. E em cada reles espaço havia uma palavra a ser decifrada, quebrada e  descoberta em todas as suas possibilidades.
Mas era triste. Muito triste. Aquela tristeza dos grandes clássicos. Tristeza clássica.
Um dia estendeu um lençol branco no chão. Página mortuária. Deitou o corpo em enigma e resolveu morrer. Corpo-letra. Ponto. Símbolo.
Naquele dia as gargantas das gavetas foram devassadas por parentes e amigos. E o silêncio falou. E dos espaços e quebras e frestas de sua morte, imagens e sons se fizeram. Em lágrimas de olhos outros. Em verbos que dançavam loucos.  E sua morte fez-se letra e frase. E livro. E texto.


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