Gato e rato
Ronie Von Rosa
Martins
O gato perseguia o rato. Sempre.
Corrida de obstáculos em que o rato sempre vencia. Buracos, esquinas, saltos,
agachamentos. A frustração do felino. O rosto achatado na parede. O martelo
insensível na cabeça. A língua em
chamas. A risada que não saia. A mãe que chorava. O rato não
vencia sempre não. Encolhido ao pé da cama observava o caminhar trôpego do
homem. O pai. O poder. No chão. Esmurrada. Surrada. Os soluços da mãe. O olho
do homem no seu olho. Do rato. Gato e rato. O que fazer? Enfrentar o gato? Se
oferecer à devoração do gato. A trilha sonora. Alegre, rápida. O denso
silêncio. Espesso. Na mão do homem a garrafa. Na mão do homem o punho cerrado.
A ofensa na boca. Em cuspe e fel. Em raiva milenar. Em ignorância secular.
Impunidade atestada. “E você. Vai fazer o quê?” O gato perguntava em deboche de
voz. “Não é homem?” e o rato via o homem e achava que não queria ser homem. Ser
homem era aquilo? “Não é homem seu rato!” gritava em saliva e cachaça que
expelia em boca que mordia e consumia tudo que era bom. Ser rato era melhor que
ser homem. Fugir para a toca. Esconder-se do gato. Recusar o homem. Recusar ser
homem. A mãe gemia. E o gato chutou-lhe a barriga. A violência era
desmistificada. Pura. Cambaleou o gato. Sentou-se na cama. Sem fôlego. Correra
muito para alcançar o rato. Os ratos. Eram todos ratos. A culpa era deles. A
vida era uma merda porque eles não ajudavam. Não faziam a parte deles. Era tudo
com ele. “Eu faço a minha parte... eu faço...” olhava para o corpo da mulher no
chão. “Tu... tu não faz a tua...” apontava um dedo que era um gargalo para o
menino e gritava: “Nem tu... ratinho... infeliz ratinho... nem tu faz a tua...”
Do que falava o gato. Pensava o
garoto.
“São um atraso.” Continuava o
pai. “Um atraso pra minha vida.” Levantou-se mas caiu ajoelhado sobre o corpo
da mulher. Gritou no ouvido que já não ouvia. “Vaca!” e riu.
A risada assustava muito o
menino. Risada cheia de fantasmas seculares, fantasmas que provinham da garrafa
que dançava na mão do homem-gato-pai. O ratinho correu. Pela porta. “Vai seu
merdinha... vai pro buraco... vai pra toca...” e ria e chorava. E soluçava o
gato. O homem. O fantasma.
Agora tentava acordar a mulher.
Empurrava o corpo de um lado para o outro. “Acorda sua vaca, não finge... eu
sei que estás aí...” E então parou. A
garrafa liberta pela mão tombou primeiro. O sangue
da garrafa escorrendo ao lado da mulher. Os olhos esbugalhados. Fora
surpreendido pelo rato. Pelo martelo. Seu próprio martelo. Tentou levantar. A
embriaguez e o peso da cabeça não permitiram, tombou. Uma. Duas. Três vezes. A
mão na cabeça constatava o sangramento. O braço estendido. “Ajuda...” os olhos
do ratinho grandes e apavorados. Corpo estático. Tombou.
A criança caminhou até a tv e
apertou o botão. Fim.
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