PARADOS
RONIE
VON MARTINS
Pensar o calor. Em toda a sua vastidão.
Quase a ponto de consumirmo-nos no seu bafo, no seu hálito incandescente.
Indecente. Pensar enquanto as mãos – suadas – perdem toda a força, a vontade. O
suor é água fervente. O suor é o derretimento do espírito. De toda a
ação. Parados.
A enorme estrada congestionada de
corpos metálicos ferventes. O asfalto negro e pegajoso parece amalgamar-se aos
pneus. Tudo uma coisa só. A terra parece engolir os veículos. E o suor. Os corpos
desidratando. Rostos cansados, irritados. Nervosos estão todos. Todos presos em
seus respectivos carros. Em suas respectivas misérias. Há uma singular trilha
sonora.
Construída através do número variado deestações de rádio que vomitam suas músicas “da hora”,
juntamente com as buzinas e o burburinho das vozes humanas e dos motores.
Discurso único. Dialeto resgatado do inferno. Das profundezas do sol.
Passou a mão instintivamente pela
calvície. Trouxe-a encharcada de suor. Na bermuda tentou seca-la. Esta também
sofria os problemas do calor, e se agarrava ao corpo úmida e apertada de forma
irritantemente desconfortável. Pelo retrovisor do carro olhou para seu rosto.
As grandes sobrancelhas encharcadas serviam de represa para os rios sudoríferos
que se formavam aqui e ali e despencavam...
Pensou no texto que estava escrevendo.
O ser humano e suas complexidades. Artigo para o jornal local.
Complexidades... a vida era isso. Tinha que resistir à vida. Parado. Sempre
estivera parado. Sentado. Escrevendo. Pensando. A mulher era só uma lembrança. Olhos
claros e
vastos. Sorriso meigo, corpo vigoroso e magro. Bonita sem ser bela. O filho.
Pequeno era uma presença só quando ela, a mãe, trazia-o deSão Paulo. Fugiram. Os dois o haviam abandonado.
Letras demais. Histórias demais. Vida de menos. Sempre assim. “Amor, amor..?”
Ela perguntava quase em lamento. “Sim, eu amo. Amo, amo... te amo... mas não te
quero.” O “não te quero” era pronunciado pela primeira vez bem baixinho, quase
no tom do ponto final da sentença, depois como forma de afirmação, de exorcismo
era gritado, vomitado: “Não te quero! Não te quero mais!”
Eram as letras. As folhas e os livros.
Olhou para o número expressivo de livros e papéis no banco
de trás do
carro. Sorriu. Eram sempre eles. Não permitiam mais ninguém. As palavras eram
espectros. Vampiros que sugavam qualquer tentativa de uma vida normal.
E a estrada estava caudalosa. Pelo lado
direito, dentro de um Vectra, uma mulher nova, morena, olhos oblíquos, boca
pequena parecia aflita. O telefone na mão. Apanhou o dele. Sem sinal. Era isso.
No entanto as marcas de aflição que riscavam o rosto da mulher do Vectra eram
mais profundas que o simples dissabor de não conseguir falar com alguém. Ela
abriu a porta do carro e colocou uma das pernas para fora. Todos os filmes de
Hollywood saltaram na memória. Perna digna de muitos comentários.
Na esquerda um Gol vermelho e um rapaz
magra e indiferente. Um pote de batatas fritas e uma latinha de Coca. Comia
sofregamente, sem tirar os olhos do produto. E cada vez que chupava o
canudinho, um barulho esquisito era ouvido. O rapaz não olhava para ninguém. Só
para o pote de batatinha.
Boné preto enterrado na cabeça.
Espinhas vulcânicas sobressaindo do rosto magro, sobrancelhas ralas e pequenas.
Por um momento seus olhares se cruzaram. O rapaz sorriu. Boca amarela. Repleta
de batata. Ele virou o rosto. Estômago fraco.
Escritor. “Quero ser escritor.” Era o
que dizia quando era jovem. Lia tudo o que lhe cai nas mãos. Escrevia muito.
Muito. Achava que era bom. A maioria achava o contrário. Conseguira apenas um
emprego de fotógrafo. Fotos de miséria e morte era o que mais sabia fazer.
Esporadicamente escrevia um artigo para o jornal. Tinha algumas amizades e o
pessoal dava um “mole”.
A mulher saiu por inteiro. E no momento
que fazia isso. Todos os olhares masculinos a seguiram. Levantaram-na,
incorporaram-se ao seu corpo. Possuíram-na em forma, perfil, figura, silhueta,
imagem e mulher. Inteira. Chorosa. Chutou o pneu do carro visivelmente irritada
pela situação. Ele podia jurar ter ouvido a palavra “merda”.
As pernas longas e lindas da mulher
ainda caminhavam nos seus olhos. Pensou em puxar conversa, ser cavalheiro. E um
filete de suor escorregou da sua testa e despencou no seu nariz. E percebeu que
estava no inferno. E um calor insuportável tomou-lhe a razão. “Merda.” Saiu e
caminhou para a mulher.
O filho era lindo. Sempre queria
brincar, conversar. Mas ele não podia. Dedos presos nas teclas do computador e
olhos dominados pelas letras. “ Fala com ele Ítalo.” Dizia a mulher. “Fala com
o teu filho!” e ele fazia um afago no menino e seguia escrevendo sua obra fantástica.
Foi então que eles o deixaram.
“Acabou.” E foram para São Paulo. Ele ficava em Porto Alegre. Parado. Criando
um mundo que não era o seu?
A mulher do Vectra olhou-o. Ele não era
magro. Grandes bermudas, sandálias de couro. Barriga um pouco proeminente.
Totalmente calvo e com grandes sobrancelhas. Suando, suando muito. Antes que
ele pudesse abrir a boca para dizer algo, outro homem saltou do garro. Vomitado
pela fúria. Lata de cerveja na mão, rosto transfigurado pelo calor e
indignação. Gritava obscenidades, fazia gestos, chutava os outros carros,
mandava todo o mundo para lugares que não eram agradáveis. Tropeçou e caiu
perto do carro do rapaz das batatinhas.
O jovem quase engasgou de tanto rir,
cuspindo fragmentos pegajosos do alimento para o ar. O bêbado lenvantou-se.
Chutou a porta do carro do rapaz. Afundou a lataria. O rapaz fez outra careta
engraçada e deu outra gargalhada, zombando do homem. Este enfurecido, com um
safanão, jogou o pacote de batatas no chão. O jovem do carro agora não ria. E a
coisa esquentava.
A mulher arregalou os olhos. O pânico
estampado na boca que engolia todo o som de seu grito. Atirou-se ao peito dele,
abraçando-o com força. Ele forçou-a para o chão. Encolhidos atrás do carro dele
assistiam apavorados o rapaz encostar o cano de um enorme revólver na cabeça do
homem.
“Valentão, né... valentão...” O garoto
provocava, voz esganiçada. Mão firme e ossuda. “Valentão, né...?” “E agora
valentão... hein... e agora?”
Sob a mira do revólver, o bêbado
encolhia-se todo e gemia. As calças mijadas. O corpo trêmulo, olhos apertados
quase sentindo a dor de morrer...
Enquanto as rádios propunham outras
trilhas para a ação que se desenrolava, ele ouviu a sua própria voz pedindo
calma ao garoto, que ficasse calmo, todo mundo estava nervoso, era melhor
ficarem calmos... pro bem de todos... foi interrompido pelo grito do rapaz
mandando que calasse a boca. “Cala a boca veado!”, chutou o homem que estava a
sua frente e arrancou-lhe a carteira do bolso. O relógio. Bebeu um gole da
cerveja. Ainda gritando foi limpando os motoristas mais próximos, carteiras,
bolsas, brincos, e tudo que pudesse valer alguma coisa. Chegou perto dele e da
mulher. “Levanta bundão” levou-o até o carro. Olhou para o interior. “Só essa
merda de livro hein?” arrancou a carteira da mão. “Manda isso pra cá careca”
deu uma risada, olhou pra mulher toda encolhida, “Não adianta insistir com a
mina não seu trouxa, isso é mulher demais pro teu caminhazinho” apalpou as
nádegas da mulher que agarrou-se a ele assustada. Outros homens tentaram sair
dos carros para ajudar. Sentimento de herói. Dama indefesa, essas coisas... o
cano do revólver olhou fixamente para cada um deles e eles voltaram. Sempre
voltavam.
O calor. Todos suavam muito. Todos
tremiam muito. O rapaz corria feliz por entre os carros. Rápido, ágil, mas
feliz. Ninguém se animou a gritar. Ninguém se animou a reclamar. Estavam todos
parados. Rendidos. A mulher começou a chorar. O bêbado levantou-se mais
furioso, ia telefonar pra polícia, era amigo do deputado tal, ia dar um jeito,
que todo mundo era covarde, que “tu”, e apontava para ele. “Tu é um covarde,
deixou o meliante pegar a bunda da dona e não fez nada, Tu é um cov...” e
estatelou-se no chão novamente. A mulher o esmurrara violentamente. E como se
não bastasse chutou-lhe os testículos. Ele vomitou. E chorou. “Desprezível” foi
o que ela disse.
Ela falou sobre o marido. Político.
Deputado. Homem violento. Que o traia. Que ele suspeitava. Que tinha que estar
em casa antes dele chegar. Que ele era capaz de lhe bater. Que podia perder
tudo. Que ele podia acabar com a vida dela. E com a vida do amante. Que não
agüentava mais aquela vida. Limpou uma lágrima que se misturava ao suor. Que
era infeliz. O decote falava mais alto, tinha um discurso mais eloqüente, e
respondia todas as questões...
Escorou-se no carro e ia começar a
dizer que era escritor, intelectual, que era muito inteligente e sensível, que
apesar de não ser bonito era muito bom de cama e que adoraria fazer com ela o
que ela bem quisesse, ouviram um disparo. Depois outro. Gritaria entre os
carros, mulheres chorando, crianças correndo. Fecharam os carros e juntos com
todo resto se puseram a correr para ver o que estava acontecendo. Corriam
juntos. E o decote e as pernas da mulher pareciam ditar as regras de uma nova
trilha sonora.
Estendido a alguns metros dali estava o
rapaz das batatinhas. Um pouco mais a frente um homem gemia com a mão na
barriga. Policial, uniforme manchado de sangue. Morrendo. Indo embora daquele
inferno. O parceiro desolado escorada na viatura.
“Estavam indo para uma conferência.” Um
outro homem falava. “O guri veio correndo de arma em punho, ele ( apontou para
o moribundo) tentou pará-lo, o guri atirou, acertou ele na barriga, foi então
que o outro atirou e derrubou o moleque. Fim.
Eles aproximaram do policial
sobrevivente. “Qual o motivo do engarrafamento?” “Acidente, um cara bateu em um
caminhão.”
Ele e a mulher olharam-se e continuaram
caminhando. Não havia nada para fazer. Todo o mundo caminhava entre os carros,
conversavam... Brigavam.
Ele pensou no seu artigo sobre as
complexidades do ser humano... o decote e as pernas da mulher ultrapassaram-no
alguns passos, e lê pode conferir a exuberância do corpo inteiro da fêmea que o
acompanhava. Complexidades.
Tomou fôlego. Ia dizer que era
escritor, sensível, intelect... A mulher já corria, passos largos. Na frente
enfermeiros, policiais, equipe de salvamento... Ele estava exausto. Tentou
acompanhar a mulher. Tentaram impedi-la de aproximar-se. Ela falou algo. Foi
permitida sua presença. Foi então que ele ouviu a gargalhada. Uma longa
gargalhada, misto de dor, angústia e alívio. Caiu ajoelhada junto ao carro em
pedaços. Levantou-se novamente e com passos firmes seguiu caminho. Sem olhar
para trás.
Ele correu até a equipe de resgate e
socorro. Fez perguntas, gesticulou, e enquanto observava atônito o corpo
ondulante da mulher perder-se entre as filas de carro e pessoas, um dos
policiais apontava para o acidente e dizia: “O marido dela.”
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