Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Parados

PARADOS
RONIE VON MARTINS

Pensar o calor. Em toda a sua vastidão. Quase a ponto de consumirmo-nos no seu bafo, no seu hálito incandescente. Indecente. Pensar enquanto as mãos – suadas – perdem toda a força, a vontade. O suor é água fervente. O suor é o derretimento do espírito. De toda a ação. Parados.
A enorme estrada congestionada de corpos metálicos ferventes. O asfalto negro e pegajoso parece amalgamar-se aos pneus. Tudo uma coisa só. A terra parece engolir os veículos. E o suor. Os corpos desidratando. Rostos cansados, irritados. Nervosos estão todos. Todos presos em seus respectivos carros. Em suas respectivas misérias. Há uma singular trilha sonora. Construída através do número variado deestações de rádio que vomitam suas músicas “da hora”, juntamente com as buzinas e o burburinho das vozes humanas e dos motores. Discurso único. Dialeto resgatado do inferno. Das profundezas do sol.
Passou a mão instintivamente pela calvície. Trouxe-a encharcada de suor. Na bermuda tentou seca-la. Esta também sofria os problemas do calor, e se agarrava ao corpo úmida e apertada de forma irritantemente desconfortável. Pelo retrovisor do carro olhou para seu rosto. As grandes sobrancelhas encharcadas serviam de represa para os rios sudoríferos que se formavam aqui e ali e despencavam...
Pensou no texto que estava escrevendo. O ser humano e suas complexidades. Artigo para o jornal local. Complexidades... a vida era isso. Tinha que resistir à vida. Parado. Sempre estivera parado. Sentado. Escrevendo. Pensando. A mulher era só uma lembrança. Olhos claros e vastos. Sorriso meigo, corpo vigoroso e magro. Bonita sem ser bela. O filho. Pequeno era uma presença só quando ela, a mãe, trazia-o deSão Paulo. Fugiram. Os dois o haviam abandonado. Letras demais. Histórias demais. Vida de menos. Sempre assim. “Amor, amor..?” Ela perguntava quase em lamento. “Sim, eu amo. Amo, amo... te amo... mas não te quero.” O “não te quero” era pronunciado pela primeira vez bem baixinho, quase no tom do ponto final da sentença, depois como forma de afirmação, de exorcismo era gritado, vomitado: “Não te quero! Não te quero mais!”
Eram as letras. As folhas e os livros. Olhou para o número expressivo de livros e papéis no banco de trás do carro. Sorriu. Eram sempre eles. Não permitiam mais ninguém. As palavras eram espectros. Vampiros que sugavam qualquer tentativa de uma vida normal.
E a estrada estava caudalosa. Pelo lado direito, dentro de um Vectra, uma mulher nova, morena, olhos oblíquos, boca pequena parecia aflita. O telefone na mão. Apanhou o dele. Sem sinal. Era isso. No entanto as marcas de aflição que riscavam o rosto da mulher do Vectra eram mais profundas que o simples dissabor de não conseguir falar com alguém. Ela abriu a porta do carro e colocou uma das pernas para fora. Todos os filmes de Hollywood saltaram na memória. Perna digna de muitos comentários.
Na esquerda um Gol vermelho e um rapaz magra e indiferente. Um pote de batatas fritas e uma latinha de Coca. Comia sofregamente, sem tirar os olhos do produto. E cada vez que chupava o canudinho, um barulho esquisito era ouvido. O rapaz não olhava para ninguém. Só para o pote de batatinha.
Boné preto enterrado na cabeça. Espinhas vulcânicas sobressaindo do rosto magro, sobrancelhas ralas e pequenas. Por um momento seus olhares se cruzaram. O rapaz sorriu. Boca amarela. Repleta de batata. Ele virou o rosto. Estômago fraco.
Escritor. “Quero ser escritor.” Era o que dizia quando era jovem. Lia tudo o que lhe cai nas mãos. Escrevia muito. Muito. Achava que era bom. A maioria achava o contrário. Conseguira apenas um emprego de fotógrafo. Fotos de miséria e morte era o que mais sabia fazer. Esporadicamente escrevia um artigo para o jornal. Tinha algumas amizades e o pessoal dava um “mole”.
A mulher saiu por inteiro. E no momento que fazia isso. Todos os olhares masculinos a seguiram. Levantaram-na, incorporaram-se ao seu corpo. Possuíram-na em forma, perfil, figura, silhueta, imagem e mulher. Inteira. Chorosa. Chutou o pneu do carro visivelmente irritada pela situação. Ele podia jurar ter ouvido a palavra “merda”.
As pernas longas e lindas da mulher ainda caminhavam nos seus olhos. Pensou em puxar conversa, ser cavalheiro. E um filete de suor escorregou da sua testa e despencou no seu nariz. E percebeu que estava no inferno. E um calor insuportável tomou-lhe a razão. “Merda.” Saiu e caminhou para a mulher.
O filho era lindo. Sempre queria brincar, conversar. Mas ele não podia. Dedos presos nas teclas do computador e olhos dominados pelas letras. “ Fala com ele Ítalo.” Dizia a mulher. “Fala com o teu filho!” e ele fazia um afago no menino e seguia escrevendo sua obra fantástica.
Foi então que eles o deixaram. “Acabou.” E foram para São Paulo. Ele ficava em Porto Alegre. Parado. Criando um mundo que não era o seu?
A mulher do Vectra olhou-o. Ele não era magro. Grandes bermudas, sandálias de couro. Barriga um pouco proeminente. Totalmente calvo e com grandes sobrancelhas. Suando, suando muito. Antes que ele pudesse abrir a boca para dizer algo, outro homem saltou do garro. Vomitado pela fúria. Lata de cerveja na mão, rosto transfigurado pelo calor e indignação. Gritava obscenidades, fazia gestos, chutava os outros carros, mandava todo o mundo para lugares que não eram agradáveis. Tropeçou e caiu perto do carro do rapaz das batatinhas.
O jovem quase engasgou de tanto rir, cuspindo fragmentos pegajosos do alimento para o ar. O bêbado lenvantou-se. Chutou a porta do carro do rapaz. Afundou a lataria. O rapaz fez outra careta engraçada e deu outra gargalhada, zombando do homem. Este enfurecido, com um safanão, jogou o pacote de batatas no chão. O jovem do carro agora não ria. E a coisa esquentava.
A mulher arregalou os olhos. O pânico estampado na boca que engolia todo o som de seu grito. Atirou-se ao peito dele, abraçando-o com força. Ele forçou-a para o chão. Encolhidos atrás do carro dele assistiam apavorados o rapaz encostar o cano de um enorme revólver na cabeça do homem.
“Valentão, né... valentão...” O garoto provocava, voz esganiçada. Mão firme e ossuda. “Valentão, né...?” “E agora valentão... hein... e agora?”
Sob a mira do revólver, o bêbado encolhia-se todo e gemia. As calças mijadas. O corpo trêmulo, olhos apertados quase sentindo a dor de morrer...
Enquanto as rádios propunham outras trilhas para a ação que se desenrolava, ele ouviu a sua própria voz pedindo calma ao garoto, que ficasse calmo, todo mundo estava nervoso, era melhor ficarem calmos... pro bem de todos... foi interrompido pelo grito do rapaz mandando que calasse a boca. “Cala a boca veado!”, chutou o homem que estava a sua frente e arrancou-lhe a carteira do bolso. O relógio. Bebeu um gole da cerveja. Ainda gritando foi limpando os motoristas mais próximos, carteiras, bolsas, brincos, e tudo que pudesse valer alguma coisa. Chegou perto dele e da mulher. “Levanta bundão” levou-o até o carro. Olhou para o interior. “Só essa merda de livro hein?” arrancou a carteira da mão. “Manda isso pra cá careca” deu uma risada, olhou pra mulher toda encolhida, “Não adianta insistir com a mina não seu trouxa, isso é mulher demais pro teu caminhazinho” apalpou as nádegas da mulher que agarrou-se a ele assustada. Outros homens tentaram sair dos carros para ajudar. Sentimento de herói. Dama indefesa, essas coisas... o cano do revólver olhou fixamente para cada um deles e eles voltaram. Sempre voltavam.
O calor. Todos suavam muito. Todos tremiam muito. O rapaz corria feliz por entre os carros. Rápido, ágil, mas feliz. Ninguém se animou a gritar. Ninguém se animou a reclamar. Estavam todos parados. Rendidos. A mulher começou a chorar. O bêbado levantou-se mais furioso, ia telefonar pra polícia, era amigo do deputado tal, ia dar um jeito, que todo mundo era covarde, que “tu”, e apontava para ele. “Tu é um covarde, deixou o meliante pegar a bunda da dona e não fez nada, Tu é um cov...” e estatelou-se no chão novamente. A mulher o esmurrara violentamente. E como se não bastasse chutou-lhe os testículos. Ele vomitou. E chorou. “Desprezível” foi o que ela disse.
Ela falou sobre o marido. Político. Deputado. Homem violento. Que o traia. Que ele suspeitava. Que tinha que estar em casa antes dele chegar. Que ele era capaz de lhe bater. Que podia perder tudo. Que ele podia acabar com a vida dela. E com a vida do amante. Que não agüentava mais aquela vida. Limpou uma lágrima que se misturava ao suor. Que era infeliz. O decote falava mais alto, tinha um discurso mais eloqüente, e respondia todas as questões...
Escorou-se no carro e ia começar a dizer que era escritor, intelectual, que era muito inteligente e sensível, que apesar de não ser bonito era muito bom de cama e que adoraria fazer com ela o que ela bem quisesse, ouviram um disparo. Depois outro. Gritaria entre os carros, mulheres chorando, crianças correndo. Fecharam os carros e juntos com todo resto se puseram a correr para ver o que estava acontecendo. Corriam juntos. E o decote e as pernas da mulher pareciam ditar as regras de uma nova trilha sonora.
Estendido a alguns metros dali estava o rapaz das batatinhas. Um pouco mais a frente um homem gemia com a mão na barriga. Policial, uniforme manchado de sangue. Morrendo. Indo embora daquele inferno. O parceiro desolado escorada na viatura.
“Estavam indo para uma conferência.” Um outro homem falava. “O guri veio correndo de arma em punho, ele ( apontou para o moribundo) tentou pará-lo, o guri atirou, acertou ele na barriga, foi então que o outro atirou e derrubou o moleque. Fim.
Eles aproximaram do policial sobrevivente. “Qual o motivo do engarrafamento?” “Acidente, um cara bateu em um caminhão.”
Ele e a mulher olharam-se e continuaram caminhando. Não havia nada para fazer. Todo o mundo caminhava entre os carros, conversavam... Brigavam.
Ele pensou no seu artigo sobre as complexidades do ser humano... o decote e as pernas da mulher ultrapassaram-no alguns passos, e lê pode conferir a exuberância do corpo inteiro da fêmea que o acompanhava. Complexidades.
Tomou fôlego. Ia dizer que era escritor, sensível, intelect... A mulher já corria, passos largos. Na frente enfermeiros, policiais, equipe de salvamento... Ele estava exausto. Tentou acompanhar a mulher. Tentaram impedi-la de aproximar-se. Ela falou algo. Foi permitida sua presença. Foi então que ele ouviu a gargalhada. Uma longa gargalhada, misto de dor, angústia e alívio. Caiu ajoelhada junto ao carro em pedaços. Levantou-se novamente e com passos firmes seguiu caminho. Sem olhar para trás.
Ele correu até a equipe de resgate e socorro. Fez perguntas, gesticulou, e enquanto observava atônito o corpo ondulante da mulher perder-se entre as filas de carro e pessoas, um dos policiais apontava para o acidente e dizia: “O marido dela.”


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