Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Rodar

Caminhar é bom. Rodar é diferente. Nem tão rápido. Medida certa, tanto lenta quanto no furor do vento. O movimento.
É do coração... e das pernas que cansam numa alegria satisfeita. Simetria com chão, estrada e sombra. A sombra segue sempre e o olho à sombra. Segue também. E é o tempo da roda. Movida pela vontade. Músculo e paisagem. Pois o que se vê também é a bicicleta, e o passeio, e a passagem e o movimento todo. E o vento. E o sol.
O rosto é visto e a voz ouvida. Do outro que no contrário movimento faz que fica e continua em outro ritmo.  Os carros não contam. Frios e limpos. Rápidos e cheirando a gasolina. Ovos de lata que chocam as vaidades de seus motoristas. Que nada vêem. Embevecidos que estão por seus próprios reflexos que interpretam importâncias para pequenos espelhos. Os carros não contam.
Contam as árvores todas e a grama que nasce. E a roda que na velocidade exata percebe um verde que se singulariza de outros tantos verdes que já não são os mesmos. Nem os sorrisos. Diferentes todos. E as caras fechadas. Todas diferentes. E belas. A visão libertada de janelas. Olhos que vêem, mesmo no precipitar das duas finas rodas, rugas e vidas que se enredam, se enroscam...
Há também o som. Ou o fone e a escolha sonora. Música para rodar. Música para se perder para além do asfalto. Fugir do asfalto. No chão e no buraco. Deslizar. Fluido. Parar para atravessar a tartaruga, vislumbrar o sofá antigo e vermelho jogado inconseqüentemente no pequeno riacho, que serve de assento para todos os fantasmas e criaturas do campo. Se o alcançasse, também descansaria alguns momentos ali. Mas, agora, é templo sagrado de mistérios e ninho. De pássaros ou cobras. Somos todos. Um pouco de cada. Cobras e pássaros. Voamos e rastejamos. Então rodar. Mesmo que o braço canse e a perna chore. O mundo está esperando. Mesmo o pequeno espaço que conseguimos alcançar. A quantidade de terra que conseguimos atravessar. A ladeira que nos ameaça e se insinua. E o pneu que murcha. E as costas que cansam.

É o espaço e o tempo outro. Longe ficam o resto todo. Prisões e apreensões sociais, vaidades e obrigações, deveres aparências. Só a sombra aprendendo a ser nada. A bicicleta e o homem. Metamorfose de carne e metal na construção interessante de um nada necessário. Deserto. Repleto de tantas coisas, mas sempre vazio. Aberto para todos os caminhos impossíveis.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Dessas coisinhas de amor



Ao levantar, noite terrível. Insônia. Pesadelo. Suador também. Riu de si mesmo. Da ironia e da desgraça também.  Dizem que rir de si mesmo é como terapia, nos faz entender bem melhor o que somos... ou o que não somos (leia-se aqui um certo fatalismo e sarcasmo).
Não. Não se preocupem, esse texto não vai ser recheado de  disritmias cardíacas nem lágrimas dramáticas. Vivemos em um mundo onde se engole tudo, e ele. O mundo. Nos engole. Então não haverá drama. Haverá um certo humor trágico. Acho que fica bem um certo humor trágico. É...
Pois bem. O nome dele é Eu poético. Entenderam a jogada? Não?  Essa eu não vou explicar...
Levantou então e no banho, enquanto se preparava para a gravata o carro e a vida de sempre. Estancou. Merda. Merda!!
Estava encrencado. Entrara na sua vida algo indesejado. Sem querer, sem perceber... ou já tinha percebido? Claro que já... mas o imediatismo da coisa é mais interessante, mais impactante...
Ele. O cara mais chato do mundo. Ele, justamente ele, um homem de meia idade se viu vítima daquilo. Mas... o que é uma meia idade?  Qual é a idade toda? Voltando para o drama então. Como ele, um homem já endurecido pelo tempo e pelas mazelas da vida conseguira permitir tamanha bobagem?
O amor. Mas que merda!!! Pensava. Era uma merda. E que não viessem com frases de efeito romântico e cheias de frescura. O amor era uma merda! Era sim.
Chegava sem ser convidado, indivíduo folgado como o capitão Rodrigo, mas o Rodrigo interpretado pelo Tarcísio, o Lacerda era sofrível... (perceberam a tática de dispersão?) também não vou explicar...
Pois é. Chegava essa coisa. Cruel. Trazendo junto, grudado na pele coisinhas baixas e medíocres como o ciúmes, e coisas muito grandes como a dor. Dor singular. Não qualquer dor, mas aquela que vocês bem sabem, ou em  breve saberão. E tenho pena de vocês.
E por que digo que o amor é uma merda? Porque ele menospreza nosso cérebro. Gastamos tempo e dinheiro "treinando" o desgraçado do cérebro para esse enfrentamento. Anos e anos. Ele mais do que todos. O Eu Poético era um alucinado por esse tipo de treinamento. Livros e mais livros. Horas e horas lendo e relendo. Se preparando para o grande confronto. Seguro. Firme. Pronto. E quando vê. Não vê mais nada. Só o outro lado e aquela dor maldita no peito.  Pra puta que o pariu com essas coisinhas de amor. Já não tinha idade. Queria que o coração entendesse. O Cérebro insistia. O corpo todo preparava seminários para que o maldito órgão entendesse. Mas nada. O coração é a parte mais burra do corpo humano. Criatura imbecil. Insistente, eternamente juvenil. Infantil. O corpo definha se enruga, e ele ali, débil mental, pulsando e pulsando como um cachorrinho que balança o rabo para o dono. Patético, deprimente.
O álcool era bom para o amor. Afogava. Todo ele. Mas não matava. Só anestesiava o animal.
E fazer o quê?
Óbvio. Era óbvio. Essa coisa de amor só exige uma coisa do corpo e da alma. O  sofrimento. A dor. Não há amor sem dor. Muita dor sempre...
E é por isso que ele é uma merda. Claro que é.

No espelho seu olhos de ver muitos mundos o observavam. E tripudiavam dele. A carne que envolve o amor sempre é mais nova, mais bela, mais viçosa... e outras carnes e corpos estão dispostos a esses encontros. O amor é infantil, e os discursos prováveis desse amor são também juvenis, e ele. O Eu poético. Tinha o coração patético. O discurso afiado e cruel, já não estava mais lá. Onde se brincava de amar. Era um monstro. Situado entre ideais e conceitos, teses e análises... estava longe, já não estava mais lá. Por que aquela merda de sentimento insistia em açoitar sua costas?

Açoitar costas já é meio dramático demais...tinha prometido não cair em lugares comuns. Mas quando se fala em amor, o tombo nos mesmos buracos é quase certo.
Pois bem. Enquanto amarrava a gravata. Nó desesperado de enforcamento. Pensava. Não podia estar acontecendo. Não era verdade. Puta que pariu. Não era verdade!

Bateu a porta de casa e entrou no carro. A estrada. Um aperto no peito. Não podia ser dramático. Não queria ser dramático. Não seria.

Mas no fundo... bem lá no fundo. Longe dos diplomas e livros... existia um homem. Pequeno e frágil. Louco pra chorar.

E isso era uma merda!!!!



domingo, 10 de agosto de 2014

(As viagens de Ronísio) SOBRE AMIGOS




 Um amigo. Dois. Muitos. É difícil. Falar sobre amizade mexe com sentimentos profundos. Coisas de fazer chorar. Lembranças. Coisas de fazer pensar. No profundo das coisas. Das ações que nos fazem. Somos o que fazemos. E nunca merecemos todos os amigos que temos. É muito. Para um corpo só. Para um coração só.
Os amigos são os sorrisos. Confortadores. Debochados. Irônicos. Sorrisos-potência que energizam nossa carne, nosso organismo. Sorrisos que têm o poder de fazer brilhar nossos olhos. De chorar e rir. Os olhos nossos.
Encontra-los não é tarefa fácil. Porque eles não são de esse encontrar. Não estão escondidos, prontos para serem percebidos. Eles são de outra natureza. Amigos nascem. Pelo olho. Pela voz. Pelo prazer de estar junto. E isso não depende de tempo e espaço. Depende de alguma coisa muito anterior. Como se no início de tudo um corpo fosse explodido. Galáxia em expansão. E quando cada pedaço desse antigo corpo se aproxima se sente na própria carne. Eis a amizade.
Estes dias fui pego por uma destas coisas de amigos. De amizades. Confesso que sou emotivo e chorão... no escuro dos meus livros e de minhas letras. Na rua minha cara é firme. Turrão. Cheio de manias, às vezes até meio grosseiro. “Quase um ogro” como alguns amigos brincam.
Me levaram de surpresa. Todos eles. Para uma viagem. De carinho e emoção. Minha imagem com eles. Minha lembrança com eles. E isso é muito grande. É muito importante para energizar qualquer coração. Potencializar a alma da gente.
Mesmo não estando. Lá estava eu. Com todos eles. Ronísio. Era eu. Mas não era. Com eles, junto com os meus amigos estava o que em mim era bom. Pois sabemos que os amigos servem para isso. Para fazerem brotar de nós tudo o que é bom. É por isso que precisamos deles. Para sermos melhor. Para vivermos melhor. O amigo é como energia. Como o alimento. Nos faz viver de forma diferente e nos transforma. E nos comove. Muito.
Ser lembrado pelos amigos assume uma importância vital para estas relações sociais. Sentimos como se fôssemos além do que somos. Melhores do que somos. Acreditamos muito mais em nós mesmos. E inclusive esquecemos, um pouco, o quanto somos humanos, frágeis, mesquinhos, maus, egocêntricos e tudo o que também habita o corpo de um ser humano.
Ter amigos é apaziguar estes outros demônios que nos habitam e sorrir para a vida. Ver o nome da gente em um guardanapo de papel em uma pizza nos comove até as lágrimas. Mesmo que elas não saiam. A gente tenta sempre segurar. Ser forte. E até nisso os amigos nos ajudam. Nos ensinam que ser forte também é chorar.
E confesso a todos vocês que derramei algumas. Lágrimas escondidas. Tenho que manter a minha “fama de mau”.
Queria dizer muitas outras coisas.  Mas talvez o silêncio seja muito mais efetivo do que minhas palavras.

Aos amigos meu carinho. Aos amigos minha gratidão. E meu sorriso torto e engraçado...


segunda-feira, 14 de julho de 2014

PAÍS DO QUÊ MESMO?



Havia me decidido que não ia escrever mais. Porém, estou aqui de novo... Não resisti a esse período que estão chamando de Pós-Copa do Brasil; Dia desses tive mais uma daquelas discussões saudáveis das quais participo regularmente... Não seria melhor se “nosso” país DEIXASSE DE SER o País do Futebol?  E passássemos a ser, com o tempo, o país da Educação, por exemplo? Que nos orgulhássemos de ser brasileiros porque temos, quem sabe.. A melhor qualidade de vida do planeta? O melhor Sistema Público de Saúde?  Pois de que adianta ser o país do futebol? Para só meia dúzia ter sorte na vida?  Para uns poucos jogadores ganharem milhões e outros poucos empresários mais ainda?  De que serve a fama, se a maioria dos meninos que correm atrás de uma bola, não chegará a lugar algum; pois a despeito de seus esforços; dependem  de uns, que não tem escrúpulo nenhum?  Copa do Brasil, feita por engravatados europeus, com jogadores de times europeus, para europeus e brasileiros com salários europeus assistirem ao olho da cara...  Patrocínios exageradamente caros e investimentos inexistentes são, no mínimo, contrastantes. Portanto, quem sabe, trocamos a alcunha de “País do Futebol” por “País da Cultura”;  “País da Não-Violência”; “País Exemplo de Solidariedade”; “País do Empregado Bem Remunerado”. O “País Mais Justo do mundo”!  “O País Mais Honesto”! “ O que melhor trata seus aposentados”...  É, eu sei. Estou “viajando” como sempre... Queria um povo mais culto; uns políticos menos sujos; umas leis melhores; justiça de verdade; nosso sistema de saúde é desumano. A desigualdade social ainda é enorme. A insegurança é geral. Vamos melhorar nas urnas, diz o otimista; Não tem o que fazer, diz o pessimista...  Lutar pelo que é meu por direito! É o que aprendi! A lutar. A não me calar! Bóra protestar novamente? Sem vandalismo burro, por favor. Sem violência. Só protesto!  As eleições estão logo aí, os lobos voltaram. Não sejamos ovelhas. No mínimo cães. Brabos. Ou sigamos com essa palhaçada e o problema será de nossos filhos?  Já sei! “O País Onde Melhor Se Escolhe Os Representantes Políticos”? Não seria uma boa? Então eu voto nulo!    Vai entender...   rs

terça-feira, 1 de julho de 2014

minha mão





por Ronie Von Martins

Minha mão

Eis minha mão e a tinta.
Antes o muro, a parede e o verde palma da impressão.
Com todas, era mais uma. Mão e força e cor.
Aqui, sozinha enquadrada é só minha.
Mão.
Um não que é meu.
Minha impressão. Minha pressão.
Única mão.
De tantas outras juntas.
Sozinha lutas. Pois é minha.
A luta.
E a palma dessa mão é busca
em linhas que por mim cruzam.
Minha mão.
Em verde parede e cor.
Minha mão em discurso turvo.
Grafia da minha alma.

na fúria da minha  palma!

quarta-feira, 14 de maio de 2014

SOB PALAVRAS



O nome era Inácio. Da Silva Romão e Filho. O nome. Todo. E tudo era o nome. Respeito e conhecimento. Dos outros todos. Do povo. Pois era mecânico. Das bicicletas todas das cercanias.  Duas rodas era com ele. Sabia tudo. Tudo dos procedimentos de vida e morte das bicicletas. De todas. Conhecia pelo barulho, pela cor, pela forma, pelo som da buzina ou sino. Era o conhecedor das bicicletas. Seu Nácio das bicicletas. O famoso e bem quisto cidadão do bairro das folhas baixas das árvores poucas da rua sem asfalto ou pedra. Seu Nácio das bicicletas da Rua do Buraco.
Crente em Deus. Da igreja e do padre. Mesmo que cada coisa fosse cada coisa. Pra ele tudo era uma coisa só. Uma só coisa tudo. Tinha esse problema. Simplicidade em demasia. Ingenuidade em doses cavalares. Mas era um homem bom.
Mulher e dois filhos. Olga, Isildinho e Isaurino. A família. Casa razoável. Na esquina. Casa em esquina era mais considerada. “Moro na esquina, bem ali... o dedo apontando... na esquina.” Lugar de respeito e de poder. Os esqueletos das bicicletas atirados ou pendurados pelas paredes da casa. Pneus e aros por todo o lado. Borracha. Cheiro de pneu, cheiro de borracha.
Dona Olga era trabalhadora. Casa, roupa, comida, merda do cachorrinho no pátio, comidinha para o canário que nunca cantou nada. Nunca cantava na gaiola. O rádio era maior, imenso. O som também. E afogava e angustiava o bichinho. Recusara a cantar. Nem amarelo era mais. Cinza. E Olga. Sentada. Seu horário. Dela. Único. Morria no sofá. No horário das palavras. Ditas pelos que podiam dizer. Palavras livres. Livres de qualquer responsabilidade. Palavras faladas com o dedo. Em riste. Apontando e julgando.  Ela gostava. Dona Olga. Isildinho também. Daquele horário. Era o momento de “aprender” as coisas. “Viu só? Falava Dona Olga, agarrando forte o ombro de Isildinho. “Viu só, viu só... é isso que eu acho. É isso que eu acho. Que mulher inteligente!”
A televisão era o rosto. Sério e respeitável da verdade. E falava de justiça. De força. De como a comunidade devia reagir. Aos bandidos. “Essa cambada.” Prender, bater, amarrar com arame. Mereciam. Eram os maus. A comunidade era do bem. Os bons. Era a guerra. O povo devia estar armado. Pra resistir aos bandidos. Pra matar os bandidos.
Inácio era calmo. Como as bicicletas. Só se moviam se houvesse uma força atuando nos pedais. Outra força. Um poder exterior. E foi assim. E era assim. Enterrado nos pedais e nas correntes. Correias. Não havia bandidos, não havia o resto. Só bicicletas, selins, quadros, guidões, marchas. Tinta, óleo. Borracha. Muita borracha. Não havia além disso. Da bicicleta e do que ela lhe dava. Seu próprio nome, alcunha. Poder.
Isaurino era grande. De futebol jogador e apreciador. Gritava, xingava. Tinha posição, time, torcida. Organizado. Chorava segurando o símbolo do time, seu símbolo de força, de identidade, de pertencimento, de importância. Era quem era pelo fato de ser torcedor de seu time. Sua igreja. Seu discurso. Saurinho como os amigos chamavam, gritavam. Gordo e suado. Sorridente. Dente branco. Olho branco brilhante. Sempre feliz. E bêbado. Seu Nácio não bebia. Água sim. Apenas. Saurinho todas. O álcool. E já não sorria. Ameaçava e brigava.
Foi assim. Que todos. A família. Matou. Trucidou.
Ouviram a voz da televisão. Isildinho na Internet confirmou o inconfimável. E mataram. Já não eram a família. Eram as feras. Eles e os outros. Tijolo e pedra. E palavras mais pesadas. Agudas. E sangue e desespero. Dona Olga de pedra na mão. Saurinho gritando e arrastando o corpo com fúria e raiva e álcool, Isaurinho saltando e ofendendo. Seu Inácio cruzando por cima. Com rodas. Bicicleta. Sua arma, comida e vida.
A mulher não era. Outra. Quando a polícia chegou, dona Olga ainda batia, clava de madeira, grunhia e chamava de puta, o sangue na arma, no cadáver e no olho.
Enquanto isso na casa de um vizinho. A tv ligada. E uma voz feminina séria e respeitosa falava “ainda” em justiça. E em mãos.
E enquanto era levado pela polícia seu Nácio das bicicletas não entendia nada. Nem dona Olga, muito menos Isildinho... Isaurinho vomitava.




segunda-feira, 21 de abril de 2014

"O Teu Riso" (Pablo Neruda )

GRITARAM-ME NEGRA



BLACK & WOMAN 1 (Eugenio Barba & Victoria Santa Cruz)

LIRA - Nada a fazer

KARINA BUHR - NAO ME AME TANTO

Guri no buraco

GURI NO BURACO
Ronie Von Rosa Martins




Era um buraco. Um belo e escuro buraco. Sem medo enfiou a mão que se perdeu no outro mundo. Um belo buraco. Pensou.
A possibilidade estava dada. O buraco o olhava. Olho de escuro brilhante e sedutor. Profundidades abissais, aventuras inenarráveis. Os lados. Observou. O vazio da vida real. Nada. Só o mesmo. De sempre. Coisas e mais coisas. Pessoas e mais pessoas. Coisas de pessoas. Reações de pessoas. Sentimentos de pessoas. Muito chato. Um mundo dominado e resumido pela pessoalidade.
Não havia laranja, nem a cerca do vizinho. Estava só. No campo. Ele e o buraco enorme. Olho que refletia  a intensidade de seu prazer e curiosidade.
China?
Diziam que todo buraco ia dar na China. Sorriu ao pensar em visitar a China, aquele mundo amarelo cheio de gente amarela com aqueles sorrisos enormes cheios de dentes “né?”.
Mas e se não gostasse? E se fossem uns bobalhões e só quisessem comer arroz? Tinha horror de arroz. Só se fosse com batatinha frita, feijão e bife. Mas só arroz? Vai ver que era por isso que eram amarelos. Mas pra ser amarelo deveriam comer milho, e não arroz.
E se fosse um túnel para um outro mundo. Um reino encantado cheio de fadas e gnomos. Todo mundo andando com aquelas calças coladinhas na bunda e de botinhas. Tudo verde. E de bonezinho.
Seria piada para toda a rua. Não, não queria virar gnomo, sem essa de calça apertadinha. Estufou o peito. Era um homem. Tinha sete anos. Ia pegar muito mal para a sua reputação. O que iam dizer lá no jardim. Que era maricas? Teria que brigam com o Paulinho Toca-flauta. Ele tava sempre se arriando neste ou naquele. Ia apanhar. O Toca-flauta era enorme e mau.
Ele é que devia entrar no buraco e ir pra China. Se empanturrar de arroz até estourar. Sorriu ao pensar no menino inchando com a boca cheia de arroz. De pois cada vez que enxergava o Toca-flauta caia na risada. Levara até uns tapas do outro, mas não adiantara nada. Acabou que quando Paulinho avistava o menino, dava um jeito de se esquivar.
O resto da gurizada percebeu as tramóias de escape do Toca-flauta e acabaram trocando o apelido do Paulinho para Paulinho Tô-fora, pois cada fez que encontrava o menino, dava um jeito de sair de fininho.
Mas voltamos ao buraco. Entrou. De cabeça. Escuro. Apertado. O coelho da Alice abanou para ele. Ele sorriu. Lembrava da história. A avó contava. Lia um livro antigo. Cheio de dezenhos. Gostava do coelho. Mas gostava mais do Chapeleiro Maluco. Será que existiam mesmo? A vó contara que a Alice acordou e percebeu que tinha sonhado. Ele sorriu. Ninguém sonha assim tão bem. Nem a Alice. Nem mesmo a Emília. Aquela boneca de pano. E o Visconde. Paraou. Pensou. Até que o Visconde e o Chapeleiro ... será que eram irmãos. Não. Não podiam. Ou podiam?
Mas as pernas não podiam. A cabeça queria entrar além, mais fundo. Invadir a terra, conhecer as entranhas. Mas as pernas presas na superfície não permitiam. Correntes que o mantinham neste mundo de cá. Tentou voltar. A cabeça cheia de terra. O nariz sujo. A roupa imunda. Preso. Preso no buraco. Entre dois mundos. E  agora?
O choro veio. De mansinho, logo se transformando em fúria e pânico. Pernas encenando todo o seu desespero.
Só sentiu quando algo segurou suas pernas e o puxou para fora. Ainda chorando. A mãe o segurou no colo. Sentada na grama. Depois deitados em abraço comovente. Um sorriso que era o mesmo descansava tranqüilo no rosto de mãe e filho.



sexta-feira, 18 de abril de 2014

Vício Nacional - Parte 1


 A telenovela brasileira já foibem melhor. Teve conteúdo e autenticidade. Foi celeiro de escritores e artistas teatrais.  Agora só reedita clichês, renova carinhas bonitas e corpos sensuais. Chamar este produto de "novela" é subverter e desclassificar o estilo literário. 

Dia desses revi um capítulo de "Água Viva", em reprise numcanal a cabo. Em cena, o falecido Raul Cortez, que sempre me fez vê-lo como um ovo falante. Esta era a imagem em ação que eu formava na minha cabeça infantil, na época em que a telenovela foi exibida pela primeira vez. Talvez, por deter tamanha expressão natural no rosto, o ator abusava do recurso das pausas dramáticas teatrais. Silêncios para o espectador imaginar o pensamento da personagem. Outras feras da dramaturgia também o faziam. Uma época boa em que imaginar e ver televisão ao mesmo tempo, era possível.
Hoje, não! A edição é clipada. Frenética. O espectador, hipnotizado. Travado no sofá e longe do controle remoto. O que interessa para as emissoras é manter o aparelho ligado para dar audiência. Na novelinha idiota, as personagens pensam em voz alta e o espectador passional ou inocente, reproduz este comportamento, automaticamente.

Tudo muito bem pensado na lógica comercial. Os comandantes de programação de TV são inteligentes e não brincam em serviço. Treinados em neurolinguística.Inteligência emocional. Análises de discurso. Mestres na arte mambembe de fantoches e ventriloquia. E manipulam bem...

Reparo que as pessoas viciadas em folhetins televisivos costumam narrar os fatos corriqueiros do cotidiano: "Bem... entrou o comercial da novela... Vou na cozinha tomar minha água porque estou com sede e vou ao banheiro fazer xixi porque a bexiga tá cheia e esse sofá me dá dor nas costas..."  Falam tudo o que pensam. Agregam importâncias a coisas corriqueiras. Riem e choram com melodramas rasteiros e bobos.

E os comportamentos neuróticos e histéricos dos adolescentes? Artistas amadores que ainda não dominam a arte da representação, interpretam nervosismo com gritos e xingamentos. Os diretores não percebem ou fazem vista grossa? A massiva exposição em rede nacional transforma estes projetos deatores e atrizes em toscas celebridades e exemplos a serem seguidos por adolescentes de todo o país. Para muita gente, trata-se de moderna lavagem cerebral e covarde ataque aos autênticos costumes regionais e interioranos.

Salvas exceções, a grande maioria dos renomados novelistas não demonstra ou admite preocupação com as consequências de suas tramas diabólicas. Estes novelistas debruçam-se sobre a licença poética da ficção como justificativa para incoerências. São escritores prestigiados. Afetados pela vaidade, a soberba e não raro os demais pecados capitais. Talvez por experiência própria, estes criadores de comportamento demonstram conhecer muito bem o submundo das sensações humanas. Chafurdam nos esgotos dos sentimentos perversos para desenterrarem seus toscos personagens. Os novelistas tem poder. Assim como os marqueteiros políticos, reinventam um mundo de mentiras que, a posteriori,serão reproduzidas e assimiladas como verdade pelas parcelas incautas da população. 
Exagero? 
Esta é uma obra de realidade. Qualquer semelhança com a ficção não é mera coincidência.

Marcelo Coelho

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Gato e rato

Gato e rato
Ronie Von Rosa Martins


O gato perseguia o rato. Sempre. Corrida de obstáculos em que o rato sempre vencia. Buracos, esquinas, saltos, agachamentos. A frustração do felino. O rosto achatado na parede. O martelo insensível na cabeça. A língua em chamas. A risada que não saia. A mãe que chorava. O rato não vencia sempre não. Encolhido ao pé da cama observava o caminhar trôpego do homem. O pai. O poder. No chão. Esmurrada. Surrada. Os soluços da mãe. O olho do homem no seu olho. Do rato. Gato e rato. O que fazer? Enfrentar o gato? Se oferecer à devoração do gato. A trilha sonora. Alegre, rápida. O denso silêncio. Espesso. Na mão do homem a garrafa. Na mão do homem o punho cerrado. A ofensa na boca. Em cuspe e fel. Em raiva milenar. Em ignorância secular. Impunidade atestada. “E você. Vai fazer o quê?” O gato perguntava em deboche de voz. “Não é homem?” e o rato via o homem e achava que não queria ser homem. Ser homem era aquilo? “Não é homem seu rato!” gritava em saliva e cachaça que expelia em boca que mordia e consumia tudo que era bom. Ser rato era melhor que ser homem. Fugir para a toca. Esconder-se do gato. Recusar o homem. Recusar ser homem. A mãe gemia. E o gato chutou-lhe a barriga. A violência era desmistificada. Pura. Cambaleou o gato. Sentou-se na cama. Sem fôlego. Correra muito para alcançar o rato. Os ratos. Eram todos ratos. A culpa era deles. A vida era uma merda porque eles não ajudavam. Não faziam a parte deles. Era tudo com ele. “Eu faço a minha parte... eu faço...” olhava para o corpo da mulher no chão. “Tu... tu não faz a tua...” apontava um dedo que era um gargalo para o menino e gritava: “Nem tu... ratinho... infeliz ratinho... nem tu faz a tua...”
Do que falava o gato. Pensava o garoto.
“São um atraso.” Continuava o pai. “Um atraso pra minha vida.” Levantou-se mas caiu ajoelhado sobre o corpo da mulher. Gritou no ouvido que já não ouvia. “Vaca!” e riu.
A risada assustava muito o menino. Risada cheia de fantasmas seculares, fantasmas que provinham da garrafa que dançava na mão do homem-gato-pai. O ratinho correu. Pela porta. “Vai seu merdinha... vai pro buraco... vai pra toca...” e ria e chorava. E soluçava o gato. O homem. O fantasma.
Agora tentava acordar a mulher. Empurrava o corpo de um lado para o outro. “Acorda sua vaca, não finge... eu sei que estás aí...”  E então parou. A garrafa liberta pela mão tombou primeiro. O sangue da garrafa escorrendo ao lado da mulher. Os olhos esbugalhados. Fora surpreendido pelo rato. Pelo martelo. Seu próprio martelo. Tentou levantar. A embriaguez e o peso da cabeça não permitiram, tombou. Uma. Duas. Três vezes. A mão na cabeça constatava o sangramento. O braço estendido. “Ajuda...” os olhos do ratinho grandes e apavorados. Corpo estático. Tombou.

A criança caminhou até a tv e apertou o botão. Fim.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Parados

PARADOS
RONIE VON MARTINS

Pensar o calor. Em toda a sua vastidão. Quase a ponto de consumirmo-nos no seu bafo, no seu hálito incandescente. Indecente. Pensar enquanto as mãos – suadas – perdem toda a força, a vontade. O suor é água fervente. O suor é o derretimento do espírito. De toda a ação. Parados.
A enorme estrada congestionada de corpos metálicos ferventes. O asfalto negro e pegajoso parece amalgamar-se aos pneus. Tudo uma coisa só. A terra parece engolir os veículos. E o suor. Os corpos desidratando. Rostos cansados, irritados. Nervosos estão todos. Todos presos em seus respectivos carros. Em suas respectivas misérias. Há uma singular trilha sonora. Construída através do número variado deestações de rádio que vomitam suas músicas “da hora”, juntamente com as buzinas e o burburinho das vozes humanas e dos motores. Discurso único. Dialeto resgatado do inferno. Das profundezas do sol.
Passou a mão instintivamente pela calvície. Trouxe-a encharcada de suor. Na bermuda tentou seca-la. Esta também sofria os problemas do calor, e se agarrava ao corpo úmida e apertada de forma irritantemente desconfortável. Pelo retrovisor do carro olhou para seu rosto. As grandes sobrancelhas encharcadas serviam de represa para os rios sudoríferos que se formavam aqui e ali e despencavam...
Pensou no texto que estava escrevendo. O ser humano e suas complexidades. Artigo para o jornal local. Complexidades... a vida era isso. Tinha que resistir à vida. Parado. Sempre estivera parado. Sentado. Escrevendo. Pensando. A mulher era só uma lembrança. Olhos claros e vastos. Sorriso meigo, corpo vigoroso e magro. Bonita sem ser bela. O filho. Pequeno era uma presença só quando ela, a mãe, trazia-o deSão Paulo. Fugiram. Os dois o haviam abandonado. Letras demais. Histórias demais. Vida de menos. Sempre assim. “Amor, amor..?” Ela perguntava quase em lamento. “Sim, eu amo. Amo, amo... te amo... mas não te quero.” O “não te quero” era pronunciado pela primeira vez bem baixinho, quase no tom do ponto final da sentença, depois como forma de afirmação, de exorcismo era gritado, vomitado: “Não te quero! Não te quero mais!”
Eram as letras. As folhas e os livros. Olhou para o número expressivo de livros e papéis no banco de trás do carro. Sorriu. Eram sempre eles. Não permitiam mais ninguém. As palavras eram espectros. Vampiros que sugavam qualquer tentativa de uma vida normal.
E a estrada estava caudalosa. Pelo lado direito, dentro de um Vectra, uma mulher nova, morena, olhos oblíquos, boca pequena parecia aflita. O telefone na mão. Apanhou o dele. Sem sinal. Era isso. No entanto as marcas de aflição que riscavam o rosto da mulher do Vectra eram mais profundas que o simples dissabor de não conseguir falar com alguém. Ela abriu a porta do carro e colocou uma das pernas para fora. Todos os filmes de Hollywood saltaram na memória. Perna digna de muitos comentários.
Na esquerda um Gol vermelho e um rapaz magra e indiferente. Um pote de batatas fritas e uma latinha de Coca. Comia sofregamente, sem tirar os olhos do produto. E cada vez que chupava o canudinho, um barulho esquisito era ouvido. O rapaz não olhava para ninguém. Só para o pote de batatinha.
Boné preto enterrado na cabeça. Espinhas vulcânicas sobressaindo do rosto magro, sobrancelhas ralas e pequenas. Por um momento seus olhares se cruzaram. O rapaz sorriu. Boca amarela. Repleta de batata. Ele virou o rosto. Estômago fraco.
Escritor. “Quero ser escritor.” Era o que dizia quando era jovem. Lia tudo o que lhe cai nas mãos. Escrevia muito. Muito. Achava que era bom. A maioria achava o contrário. Conseguira apenas um emprego de fotógrafo. Fotos de miséria e morte era o que mais sabia fazer. Esporadicamente escrevia um artigo para o jornal. Tinha algumas amizades e o pessoal dava um “mole”.
A mulher saiu por inteiro. E no momento que fazia isso. Todos os olhares masculinos a seguiram. Levantaram-na, incorporaram-se ao seu corpo. Possuíram-na em forma, perfil, figura, silhueta, imagem e mulher. Inteira. Chorosa. Chutou o pneu do carro visivelmente irritada pela situação. Ele podia jurar ter ouvido a palavra “merda”.
As pernas longas e lindas da mulher ainda caminhavam nos seus olhos. Pensou em puxar conversa, ser cavalheiro. E um filete de suor escorregou da sua testa e despencou no seu nariz. E percebeu que estava no inferno. E um calor insuportável tomou-lhe a razão. “Merda.” Saiu e caminhou para a mulher.
O filho era lindo. Sempre queria brincar, conversar. Mas ele não podia. Dedos presos nas teclas do computador e olhos dominados pelas letras. “ Fala com ele Ítalo.” Dizia a mulher. “Fala com o teu filho!” e ele fazia um afago no menino e seguia escrevendo sua obra fantástica.
Foi então que eles o deixaram. “Acabou.” E foram para São Paulo. Ele ficava em Porto Alegre. Parado. Criando um mundo que não era o seu?
A mulher do Vectra olhou-o. Ele não era magro. Grandes bermudas, sandálias de couro. Barriga um pouco proeminente. Totalmente calvo e com grandes sobrancelhas. Suando, suando muito. Antes que ele pudesse abrir a boca para dizer algo, outro homem saltou do garro. Vomitado pela fúria. Lata de cerveja na mão, rosto transfigurado pelo calor e indignação. Gritava obscenidades, fazia gestos, chutava os outros carros, mandava todo o mundo para lugares que não eram agradáveis. Tropeçou e caiu perto do carro do rapaz das batatinhas.
O jovem quase engasgou de tanto rir, cuspindo fragmentos pegajosos do alimento para o ar. O bêbado lenvantou-se. Chutou a porta do carro do rapaz. Afundou a lataria. O rapaz fez outra careta engraçada e deu outra gargalhada, zombando do homem. Este enfurecido, com um safanão, jogou o pacote de batatas no chão. O jovem do carro agora não ria. E a coisa esquentava.
A mulher arregalou os olhos. O pânico estampado na boca que engolia todo o som de seu grito. Atirou-se ao peito dele, abraçando-o com força. Ele forçou-a para o chão. Encolhidos atrás do carro dele assistiam apavorados o rapaz encostar o cano de um enorme revólver na cabeça do homem.
“Valentão, né... valentão...” O garoto provocava, voz esganiçada. Mão firme e ossuda. “Valentão, né...?” “E agora valentão... hein... e agora?”
Sob a mira do revólver, o bêbado encolhia-se todo e gemia. As calças mijadas. O corpo trêmulo, olhos apertados quase sentindo a dor de morrer...
Enquanto as rádios propunham outras trilhas para a ação que se desenrolava, ele ouviu a sua própria voz pedindo calma ao garoto, que ficasse calmo, todo mundo estava nervoso, era melhor ficarem calmos... pro bem de todos... foi interrompido pelo grito do rapaz mandando que calasse a boca. “Cala a boca veado!”, chutou o homem que estava a sua frente e arrancou-lhe a carteira do bolso. O relógio. Bebeu um gole da cerveja. Ainda gritando foi limpando os motoristas mais próximos, carteiras, bolsas, brincos, e tudo que pudesse valer alguma coisa. Chegou perto dele e da mulher. “Levanta bundão” levou-o até o carro. Olhou para o interior. “Só essa merda de livro hein?” arrancou a carteira da mão. “Manda isso pra cá careca” deu uma risada, olhou pra mulher toda encolhida, “Não adianta insistir com a mina não seu trouxa, isso é mulher demais pro teu caminhazinho” apalpou as nádegas da mulher que agarrou-se a ele assustada. Outros homens tentaram sair dos carros para ajudar. Sentimento de herói. Dama indefesa, essas coisas... o cano do revólver olhou fixamente para cada um deles e eles voltaram. Sempre voltavam.
O calor. Todos suavam muito. Todos tremiam muito. O rapaz corria feliz por entre os carros. Rápido, ágil, mas feliz. Ninguém se animou a gritar. Ninguém se animou a reclamar. Estavam todos parados. Rendidos. A mulher começou a chorar. O bêbado levantou-se mais furioso, ia telefonar pra polícia, era amigo do deputado tal, ia dar um jeito, que todo mundo era covarde, que “tu”, e apontava para ele. “Tu é um covarde, deixou o meliante pegar a bunda da dona e não fez nada, Tu é um cov...” e estatelou-se no chão novamente. A mulher o esmurrara violentamente. E como se não bastasse chutou-lhe os testículos. Ele vomitou. E chorou. “Desprezível” foi o que ela disse.
Ela falou sobre o marido. Político. Deputado. Homem violento. Que o traia. Que ele suspeitava. Que tinha que estar em casa antes dele chegar. Que ele era capaz de lhe bater. Que podia perder tudo. Que ele podia acabar com a vida dela. E com a vida do amante. Que não agüentava mais aquela vida. Limpou uma lágrima que se misturava ao suor. Que era infeliz. O decote falava mais alto, tinha um discurso mais eloqüente, e respondia todas as questões...
Escorou-se no carro e ia começar a dizer que era escritor, intelectual, que era muito inteligente e sensível, que apesar de não ser bonito era muito bom de cama e que adoraria fazer com ela o que ela bem quisesse, ouviram um disparo. Depois outro. Gritaria entre os carros, mulheres chorando, crianças correndo. Fecharam os carros e juntos com todo resto se puseram a correr para ver o que estava acontecendo. Corriam juntos. E o decote e as pernas da mulher pareciam ditar as regras de uma nova trilha sonora.
Estendido a alguns metros dali estava o rapaz das batatinhas. Um pouco mais a frente um homem gemia com a mão na barriga. Policial, uniforme manchado de sangue. Morrendo. Indo embora daquele inferno. O parceiro desolado escorada na viatura.
“Estavam indo para uma conferência.” Um outro homem falava. “O guri veio correndo de arma em punho, ele ( apontou para o moribundo) tentou pará-lo, o guri atirou, acertou ele na barriga, foi então que o outro atirou e derrubou o moleque. Fim.
Eles aproximaram do policial sobrevivente. “Qual o motivo do engarrafamento?” “Acidente, um cara bateu em um caminhão.”
Ele e a mulher olharam-se e continuaram caminhando. Não havia nada para fazer. Todo o mundo caminhava entre os carros, conversavam... Brigavam.
Ele pensou no seu artigo sobre as complexidades do ser humano... o decote e as pernas da mulher ultrapassaram-no alguns passos, e lê pode conferir a exuberância do corpo inteiro da fêmea que o acompanhava. Complexidades.
Tomou fôlego. Ia dizer que era escritor, sensível, intelect... A mulher já corria, passos largos. Na frente enfermeiros, policiais, equipe de salvamento... Ele estava exausto. Tentou acompanhar a mulher. Tentaram impedi-la de aproximar-se. Ela falou algo. Foi permitida sua presença. Foi então que ele ouviu a gargalhada. Uma longa gargalhada, misto de dor, angústia e alívio. Caiu ajoelhada junto ao carro em pedaços. Levantou-se novamente e com passos firmes seguiu caminho. Sem olhar para trás.
Ele correu até a equipe de resgate e socorro. Fez perguntas, gesticulou, e enquanto observava atônito o corpo ondulante da mulher perder-se entre as filas de carro e pessoas, um dos policiais apontava para o acidente e dizia: “O marido dela.”