Através de uma escrita que habita os espaços dos blogs literários, este projeto pretende fazer pensar caminhos outros para uma educação que se relacione com as possibilidades advindas das novas tecnologias de informação e comunicação. Outro olhar para a formação das subjetividades blogadas. Discorremos sobre uma ideia de formação atravessada e arejada pela Literatura, Arte e Filosofia da Diferença que pense o saber para além da cientificidade.
Escrever?
"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
terça-feira, 25 de novembro de 2014
Rodar
Caminhar é bom. Rodar é
diferente. Nem tão rápido. Medida certa, tanto lenta quanto no furor do vento. O
movimento.
É do coração... e das
pernas que cansam numa alegria satisfeita. Simetria com chão, estrada e sombra.
A sombra segue sempre e o olho à sombra. Segue também. E é o tempo da roda. Movida
pela vontade. Músculo e paisagem. Pois o que se vê também é a bicicleta, e o
passeio, e a passagem e o movimento todo. E o vento. E o sol.
O rosto é visto e a voz
ouvida. Do outro que no contrário movimento faz que fica e continua em outro ritmo.
Os carros não contam. Frios e limpos. Rápidos
e cheirando a gasolina. Ovos de lata que chocam as vaidades de seus motoristas.
Que nada vêem. Embevecidos que estão por seus próprios reflexos que interpretam
importâncias para pequenos espelhos. Os carros não contam.
Contam as árvores todas
e a grama que nasce. E a roda que na velocidade exata percebe um verde que se
singulariza de outros tantos verdes que já não são os mesmos. Nem os sorrisos. Diferentes
todos. E as caras fechadas. Todas diferentes. E belas. A visão libertada de janelas.
Olhos que vêem, mesmo no precipitar das duas finas rodas, rugas e vidas que se
enredam, se enroscam...
Há também o som. Ou o
fone e a escolha sonora. Música para rodar. Música para se perder para além do
asfalto. Fugir do asfalto. No chão e no buraco. Deslizar. Fluido. Parar para
atravessar a tartaruga, vislumbrar o sofá antigo e vermelho jogado inconseqüentemente
no pequeno riacho, que serve de assento para todos os fantasmas e criaturas do
campo. Se o alcançasse, também descansaria alguns momentos ali. Mas, agora, é
templo sagrado de mistérios e ninho. De pássaros ou cobras. Somos todos. Um pouco
de cada. Cobras e pássaros. Voamos e rastejamos. Então rodar. Mesmo que o braço
canse e a perna chore. O mundo está esperando. Mesmo o pequeno espaço que
conseguimos alcançar. A quantidade de terra que conseguimos atravessar. A ladeira
que nos ameaça e se insinua. E o pneu que murcha. E as costas que cansam.
É o espaço e o tempo
outro. Longe ficam o resto todo. Prisões e apreensões sociais, vaidades e
obrigações, deveres aparências. Só a sombra aprendendo a ser nada. A bicicleta
e o homem. Metamorfose de carne e metal na construção interessante de um nada
necessário. Deserto. Repleto de tantas coisas, mas sempre vazio. Aberto para
todos os caminhos impossíveis.
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
Dessas coisinhas de amor
Ao levantar, noite terrível. Insônia. Pesadelo.
Suador também. Riu de si mesmo. Da ironia e da desgraça também. Dizem que rir de si mesmo é como terapia, nos
faz entender bem melhor o que somos... ou o que não somos (leia-se aqui um
certo fatalismo e sarcasmo).
Não. Não se preocupem, esse texto não
vai ser recheado de disritmias cardíacas
nem lágrimas dramáticas. Vivemos em um mundo onde se engole tudo, e ele. O mundo.
Nos engole. Então não haverá drama. Haverá um certo humor trágico. Acho que
fica bem um certo humor trágico. É...
Pois bem. O nome dele é Eu poético.
Entenderam a jogada? Não? Essa eu não
vou explicar...
Levantou então e no banho, enquanto se
preparava para a gravata o carro e a vida de sempre. Estancou. Merda. Merda!!
Estava encrencado. Entrara na sua vida
algo indesejado. Sem querer, sem perceber... ou já tinha percebido? Claro que
já... mas o imediatismo da coisa é mais interessante, mais impactante...
Ele. O cara mais chato do mundo. Ele,
justamente ele, um homem de meia idade se viu vítima daquilo. Mas... o que é uma
meia idade? Qual é a idade toda?
Voltando para o drama então. Como ele, um homem já endurecido pelo tempo e
pelas mazelas da vida conseguira permitir tamanha bobagem?
O amor. Mas que merda!!! Pensava. Era
uma merda. E que não viessem com frases de efeito romântico e cheias de
frescura. O amor era uma merda! Era sim.
Chegava sem ser convidado, indivíduo folgado
como o capitão Rodrigo, mas o Rodrigo interpretado pelo Tarcísio, o Lacerda era
sofrível... (perceberam a tática de dispersão?) também não vou explicar...
Pois é. Chegava essa coisa. Cruel. Trazendo
junto, grudado na pele coisinhas baixas e medíocres como o ciúmes, e coisas
muito grandes como a dor. Dor singular. Não qualquer dor, mas aquela que vocês
bem sabem, ou em breve saberão. E tenho
pena de vocês.
E por que digo que o amor é uma merda? Porque
ele menospreza nosso cérebro. Gastamos tempo e dinheiro "treinando" o
desgraçado do cérebro para esse enfrentamento. Anos e anos. Ele mais do que
todos. O Eu Poético era um alucinado por esse tipo de treinamento. Livros e
mais livros. Horas e horas lendo e relendo. Se preparando para o grande
confronto. Seguro. Firme. Pronto. E quando vê. Não vê mais nada. Só o outro
lado e aquela dor maldita no peito. Pra
puta que o pariu com essas coisinhas de amor. Já não tinha idade. Queria que o
coração entendesse. O Cérebro insistia. O corpo todo preparava seminários para
que o maldito órgão entendesse. Mas nada. O coração é a parte mais burra do
corpo humano. Criatura imbecil. Insistente, eternamente juvenil. Infantil. O corpo
definha se enruga, e ele ali, débil mental, pulsando e pulsando como um
cachorrinho que balança o rabo para o dono. Patético, deprimente.
O álcool era bom para o amor. Afogava. Todo
ele. Mas não matava. Só anestesiava o animal.
E fazer o quê?
Óbvio. Era óbvio. Essa coisa de amor só
exige uma coisa do corpo e da alma. O sofrimento. A dor. Não há amor sem dor. Muita dor
sempre...
E é por isso que ele é uma merda. Claro que
é.
No espelho seu olhos de ver muitos
mundos o observavam. E tripudiavam dele. A carne que envolve o amor sempre é
mais nova, mais bela, mais viçosa... e outras carnes e corpos estão dispostos a
esses encontros. O amor é infantil, e os discursos prováveis desse amor são
também juvenis, e ele. O Eu poético. Tinha o coração patético. O discurso
afiado e cruel, já não estava mais lá. Onde se brincava de amar. Era um
monstro. Situado entre ideais e conceitos, teses e análises... estava longe, já
não estava mais lá. Por que aquela merda de sentimento insistia em açoitar sua
costas?
Açoitar costas já é meio dramático
demais...tinha prometido não cair em lugares comuns. Mas quando se fala em
amor, o tombo nos mesmos buracos é quase certo.
Pois bem. Enquanto amarrava a gravata. Nó
desesperado de enforcamento. Pensava. Não podia estar acontecendo. Não era
verdade. Puta que pariu. Não era verdade!
Bateu a porta de casa e entrou no carro.
A estrada. Um aperto no peito. Não podia ser dramático. Não queria ser
dramático. Não seria.
Mas no fundo... bem lá no fundo. Longe dos
diplomas e livros... existia um homem. Pequeno e frágil. Louco pra chorar.
E isso era uma merda!!!!
domingo, 10 de agosto de 2014
(As viagens de Ronísio) SOBRE AMIGOS
Um amigo. Dois. Muitos. É difícil. Falar sobre amizade mexe com sentimentos profundos. Coisas de fazer chorar. Lembranças. Coisas de fazer pensar. No profundo das coisas. Das ações que nos fazem. Somos o que fazemos. E nunca merecemos todos os amigos que temos. É muito. Para um corpo só. Para um coração só.
Os
amigos são os sorrisos. Confortadores. Debochados. Irônicos. Sorrisos-potência
que energizam nossa carne, nosso organismo. Sorrisos que têm o poder de fazer
brilhar nossos olhos. De chorar e rir. Os olhos nossos.
Encontra-los
não é tarefa fácil. Porque eles não são de esse encontrar. Não estão
escondidos, prontos para serem percebidos. Eles são de outra natureza. Amigos nascem.
Pelo olho. Pela voz. Pelo prazer de estar junto. E isso não depende de tempo e
espaço. Depende de alguma coisa muito anterior. Como se no início de tudo um
corpo fosse explodido. Galáxia em expansão. E quando cada pedaço desse antigo
corpo se aproxima se sente na própria carne. Eis a amizade.
Estes
dias fui pego por uma destas coisas de amigos. De amizades. Confesso que sou
emotivo e chorão... no escuro dos meus livros e de minhas letras. Na rua minha
cara é firme. Turrão. Cheio de manias, às vezes até meio grosseiro. “Quase um
ogro” como alguns amigos brincam.
Me
levaram de surpresa. Todos eles. Para uma viagem. De carinho e emoção. Minha imagem
com eles. Minha lembrança com eles. E isso é muito grande. É muito importante
para energizar qualquer coração. Potencializar a alma da gente.
Mesmo
não estando. Lá estava eu. Com todos eles. Ronísio. Era eu. Mas não era. Com eles,
junto com os meus amigos estava o que em mim era bom. Pois sabemos que os
amigos servem para isso. Para fazerem brotar de nós tudo o que é bom. É por
isso que precisamos deles. Para sermos melhor. Para vivermos melhor. O amigo é
como energia. Como o alimento. Nos faz viver de forma diferente e nos
transforma. E nos comove. Muito.
Ser
lembrado pelos amigos assume uma importância vital para estas relações sociais.
Sentimos como se fôssemos além do que somos. Melhores do que somos. Acreditamos
muito mais em nós mesmos. E inclusive esquecemos, um pouco, o quanto somos humanos,
frágeis, mesquinhos, maus, egocêntricos e tudo o que também habita o corpo de
um ser humano.
Ter
amigos é apaziguar estes outros demônios que nos habitam e sorrir para a vida.
Ver o nome da gente em um guardanapo de papel em uma pizza nos comove até as
lágrimas. Mesmo que elas não saiam. A gente tenta sempre segurar. Ser forte. E até
nisso os amigos nos ajudam. Nos ensinam que ser forte também é chorar.
E
confesso a todos vocês que derramei algumas. Lágrimas escondidas. Tenho que
manter a minha “fama de mau”.
Queria
dizer muitas outras coisas. Mas talvez o
silêncio seja muito mais efetivo do que minhas palavras.
Aos
amigos meu carinho. Aos amigos minha gratidão. E meu sorriso torto e
engraçado...
segunda-feira, 14 de julho de 2014
PAÍS DO QUÊ MESMO?
Havia
me decidido que não ia escrever mais. Porém, estou aqui de novo... Não
resisti a esse período que estão chamando de Pós-Copa do Brasil; Dia
desses tive mais uma daquelas discussões saudáveis das quais participo
regularmente... Não seria melhor se “nosso” país DEIXASSE DE SER o País do
Futebol? E passássemos a ser, com o
tempo, o país da Educação, por exemplo? Que nos orgulhássemos de ser brasileiros porque temos, quem sabe.. A melhor qualidade de vida do planeta? O melhor Sistema Público de
Saúde? Pois
de que adianta ser o país do futebol? Para só meia dúzia ter sorte na vida? Para uns poucos jogadores
ganharem milhões e outros poucos empresários mais ainda? De que serve a fama, se a
maioria dos meninos que correm atrás de uma bola, não chegará a lugar algum;
pois a despeito de seus esforços; dependem
de uns, que não tem escrúpulo nenhum?
Copa do Brasil, feita por engravatados europeus, com jogadores de times
europeus, para europeus e brasileiros com salários europeus assistirem ao olho
da cara... Patrocínios exageradamente
caros e investimentos inexistentes são, no mínimo, contrastantes. Portanto,
quem sabe, trocamos a alcunha de “País do Futebol” por “País da Cultura”; “País da Não-Violência”; “País Exemplo de
Solidariedade”; “País do Empregado Bem Remunerado”. O “País Mais Justo do
mundo”! “O País Mais Honesto”! “ O que
melhor trata seus aposentados”... É, eu
sei. Estou “viajando” como sempre... Queria um povo mais culto; uns políticos
menos sujos; umas leis melhores; justiça de verdade; nosso sistema de saúde é
desumano. A desigualdade social ainda é enorme. A insegurança é geral. Vamos
melhorar nas urnas, diz o otimista; Não tem o que fazer, diz o pessimista... Lutar pelo que é meu por direito! É o que aprendi!
A lutar. A não me calar! Bóra protestar novamente? Sem vandalismo burro, por
favor. Sem violência. Só protesto! As
eleições estão logo aí, os lobos voltaram. Não sejamos ovelhas. No mínimo cães.
Brabos. Ou sigamos com essa palhaçada e o problema será de nossos filhos? Já sei! “O País Onde Melhor Se Escolhe Os
Representantes Políticos”? Não seria uma boa? Então eu voto nulo! Vai entender... rs
terça-feira, 1 de julho de 2014
minha mão
por Ronie Von Martins
Minha mão
Eis minha mão e a tinta.
Antes o muro, a parede e o verde palma da impressão.
Com todas, era mais uma. Mão e força e cor.
Aqui, sozinha enquadrada é só minha.
Mão.
Um não que é meu.
Minha impressão. Minha pressão.
Única mão.
De tantas outras juntas.
Sozinha lutas. Pois é minha.
A luta.
E a palma dessa mão é busca
em linhas que por mim cruzam.
Minha mão.
Em verde parede e cor.
Minha mão em discurso turvo.
Grafia da minha alma.
na fúria da minha palma!
segunda-feira, 16 de junho de 2014
quarta-feira, 14 de maio de 2014
SOB PALAVRAS
O
nome era Inácio. Da Silva Romão e Filho. O nome. Todo. E tudo era o nome. Respeito
e conhecimento. Dos outros todos. Do povo. Pois era mecânico. Das bicicletas
todas das cercanias. Duas rodas era com
ele. Sabia tudo. Tudo dos procedimentos de vida e morte das bicicletas. De todas.
Conhecia pelo barulho, pela cor, pela forma, pelo som da buzina ou sino. Era o conhecedor
das bicicletas. Seu Nácio das bicicletas. O famoso e bem quisto cidadão do
bairro das folhas baixas das árvores poucas da rua sem asfalto ou pedra. Seu
Nácio das bicicletas da Rua do Buraco.
Crente
em Deus. Da igreja e do padre. Mesmo que cada coisa fosse cada coisa. Pra ele
tudo era uma coisa só. Uma só coisa tudo. Tinha esse problema. Simplicidade em
demasia. Ingenuidade em doses cavalares. Mas era um homem bom.
Mulher
e dois filhos. Olga, Isildinho e Isaurino. A família. Casa razoável. Na esquina.
Casa em esquina era mais considerada. “Moro na esquina, bem ali... o dedo
apontando... na esquina.” Lugar de respeito e de poder. Os esqueletos das
bicicletas atirados ou pendurados pelas paredes da casa. Pneus e aros por todo
o lado. Borracha. Cheiro de pneu, cheiro de borracha.
Dona
Olga era trabalhadora. Casa, roupa, comida, merda do cachorrinho no pátio,
comidinha para o canário que nunca cantou nada. Nunca cantava na gaiola. O rádio
era maior, imenso. O som também. E afogava e angustiava o bichinho. Recusara a
cantar. Nem amarelo era mais. Cinza. E Olga. Sentada. Seu horário. Dela. Único.
Morria no sofá. No horário das palavras. Ditas pelos que podiam dizer. Palavras
livres. Livres de qualquer responsabilidade. Palavras faladas com o dedo. Em riste.
Apontando e julgando. Ela gostava. Dona
Olga. Isildinho também. Daquele horário. Era o momento de “aprender” as coisas.
“Viu só? Falava Dona Olga, agarrando forte o ombro de Isildinho. “Viu só, viu
só... é isso que eu acho. É isso que eu acho. Que mulher inteligente!”
A
televisão era o rosto. Sério e respeitável da verdade. E falava de justiça. De força.
De como a comunidade devia reagir. Aos bandidos. “Essa cambada.” Prender,
bater, amarrar com arame. Mereciam. Eram os maus. A comunidade era do bem. Os bons.
Era a guerra. O povo devia estar armado. Pra resistir aos bandidos. Pra matar
os bandidos.
Inácio
era calmo. Como as bicicletas. Só se moviam se houvesse uma força atuando nos
pedais. Outra força. Um poder exterior. E foi assim. E era assim. Enterrado nos
pedais e nas correntes. Correias. Não havia bandidos, não havia o resto. Só bicicletas,
selins, quadros, guidões, marchas. Tinta, óleo. Borracha. Muita borracha. Não havia
além disso. Da bicicleta e do que ela lhe dava. Seu próprio nome, alcunha. Poder.
Isaurino
era grande. De futebol jogador e apreciador. Gritava, xingava. Tinha posição,
time, torcida. Organizado. Chorava segurando o símbolo do time, seu símbolo de
força, de identidade, de pertencimento, de importância. Era quem era pelo fato
de ser torcedor de seu time. Sua igreja. Seu discurso. Saurinho como os amigos
chamavam, gritavam. Gordo e suado. Sorridente. Dente branco. Olho branco
brilhante. Sempre feliz. E bêbado. Seu Nácio não bebia. Água sim. Apenas.
Saurinho todas. O álcool. E já não sorria. Ameaçava e brigava.
Foi
assim. Que todos. A família. Matou. Trucidou.
Ouviram
a voz da televisão. Isildinho na Internet confirmou o inconfimável. E mataram. Já
não eram a família. Eram as feras. Eles e os outros. Tijolo e pedra. E palavras
mais pesadas. Agudas. E sangue e desespero. Dona Olga de pedra na mão. Saurinho
gritando e arrastando o corpo com fúria e raiva e álcool, Isaurinho saltando e
ofendendo. Seu Inácio cruzando por cima. Com rodas. Bicicleta. Sua arma, comida
e vida.
A
mulher não era. Outra. Quando a polícia chegou, dona Olga ainda batia, clava de
madeira, grunhia e chamava de puta, o sangue na arma, no cadáver e no olho.
Enquanto
isso na casa de um vizinho. A tv ligada. E uma voz feminina séria e respeitosa falava
“ainda” em justiça. E em mãos.
E
enquanto era levado pela polícia seu Nácio das bicicletas não entendia nada.
Nem dona Olga, muito menos Isildinho... Isaurinho vomitava.
segunda-feira, 21 de abril de 2014
Guri no buraco
GURI NO BURACO
Ronie Von Rosa Martins
Era um buraco. Um belo e escuro buraco. Sem medo enfiou a
mão que se perdeu no outro mundo. Um belo buraco. Pensou.
A possibilidade estava dada. O buraco o olhava. Olho de
escuro brilhante e sedutor. Profundidades abissais, aventuras inenarráveis. Os
lados. Observou. O vazio da vida real. Nada. Só o mesmo. De sempre. Coisas e
mais coisas. Pessoas e mais pessoas. Coisas de pessoas. Reações de pessoas.
Sentimentos de pessoas. Muito chato. Um mundo dominado e resumido pela
pessoalidade.
Não havia laranja, nem a cerca do vizinho. Estava só. No
campo. Ele e o buraco enorme. Olho que refletia
a intensidade de seu prazer e curiosidade.
China?
Diziam que todo buraco ia dar na China. Sorriu ao pensar em
visitar a China, aquele mundo amarelo cheio de gente amarela com aqueles
sorrisos enormes cheios de dentes “né?”.
Mas e se não gostasse? E se fossem uns bobalhões e só
quisessem comer arroz? Tinha horror de arroz. Só se fosse com batatinha frita,
feijão e bife. Mas só arroz? Vai ver que era por isso que eram amarelos. Mas
pra ser amarelo deveriam comer milho, e não arroz.
E se fosse um túnel para um outro mundo. Um reino encantado
cheio de fadas e gnomos. Todo mundo andando com aquelas calças coladinhas na
bunda e de botinhas. Tudo verde. E de bonezinho.
Seria piada para toda a rua. Não, não queria virar gnomo,
sem essa de calça apertadinha. Estufou o peito. Era um homem. Tinha sete anos.
Ia pegar muito mal para a sua reputação. O que iam dizer lá no jardim. Que era
maricas? Teria que brigam com o Paulinho Toca-flauta. Ele tava sempre se arriando neste ou naquele. Ia apanhar. O
Toca-flauta era enorme e mau.
Ele é que devia entrar no buraco e ir pra China. Se
empanturrar de arroz até estourar. Sorriu ao pensar no menino inchando com a
boca cheia de arroz. De pois cada vez que enxergava o Toca-flauta caia na
risada. Levara até uns tapas do outro, mas não adiantara nada. Acabou que
quando Paulinho avistava o menino, dava um jeito de se esquivar.
O resto da gurizada percebeu as tramóias de escape do Toca-flauta
e acabaram trocando o apelido do Paulinho para Paulinho Tô-fora, pois cada fez
que encontrava o menino, dava um jeito de sair de fininho.
Mas voltamos ao buraco. Entrou. De cabeça. Escuro. Apertado.
O coelho da Alice abanou para ele. Ele sorriu. Lembrava da história. A avó
contava. Lia um livro antigo. Cheio de dezenhos. Gostava do coelho. Mas gostava
mais do Chapeleiro Maluco. Será que existiam mesmo? A vó contara que a Alice
acordou e percebeu que tinha sonhado. Ele sorriu. Ninguém sonha assim tão bem.
Nem a Alice. Nem mesmo a Emília. Aquela boneca de pano. E o Visconde. Paraou.
Pensou. Até que o Visconde e o Chapeleiro ... será que eram irmãos. Não. Não
podiam. Ou podiam?
Mas as pernas não podiam. A cabeça queria entrar além, mais
fundo. Invadir a terra, conhecer as entranhas. Mas as pernas presas na
superfície não permitiam. Correntes que o mantinham neste mundo de cá. Tentou
voltar. A cabeça cheia de terra. O nariz sujo. A roupa imunda. Preso. Preso no
buraco. Entre dois mundos. E agora?
O choro veio. De mansinho, logo se transformando em fúria e
pânico. Pernas encenando todo o seu desespero.
Só sentiu quando algo segurou suas pernas e o puxou para
fora. Ainda chorando. A mãe o segurou no colo. Sentada na grama. Depois deitados
em abraço comovente. Um sorriso que era o mesmo descansava tranqüilo no rosto
de mãe e filho.
sexta-feira, 18 de abril de 2014
Vício Nacional - Parte 1
A telenovela brasileira já foibem melhor. Teve conteúdo e autenticidade. Foi celeiro de escritores e artistas teatrais. Agora só reedita clichês, renova carinhas bonitas e corpos sensuais. Chamar este produto de "novela" é subverter e desclassificar o estilo literário.
Dia desses revi um capítulo de "Água Viva", em reprise numcanal a cabo. Em cena, o falecido Raul Cortez, que sempre me fez vê-lo como um ovo falante. Esta era a imagem em ação que eu formava na minha cabeça infantil, na época em que a telenovela foi exibida pela primeira vez. Talvez, por deter tamanha expressão natural no rosto, o ator abusava do recurso das pausas dramáticas teatrais. Silêncios para o espectador imaginar o pensamento da personagem. Outras feras da dramaturgia também o faziam. Uma época boa em que imaginar e ver televisão ao mesmo tempo, era possível.
Hoje, não! A edição é clipada. Frenética. O espectador, hipnotizado. Travado no sofá e longe do controle remoto. O que interessa para as emissoras é manter o aparelho ligado para dar audiência. Na novelinha idiota, as personagens pensam em voz alta e o espectador passional ou inocente, reproduz este comportamento, automaticamente.
Tudo muito bem pensado na lógica comercial. Os comandantes de programação de TV são inteligentes e não brincam em serviço. Treinados em neurolinguística.Inteligência emocional. Análises de discurso. Mestres na arte mambembe de fantoches e ventriloquia. E manipulam bem...
Reparo que as pessoas viciadas em folhetins televisivos costumam narrar os fatos corriqueiros do cotidiano: "Bem... entrou o comercial da novela... Vou na cozinha tomar minha água porque estou com sede e vou ao banheiro fazer xixi porque a bexiga tá cheia e esse sofá me dá dor nas costas..." Falam tudo o que pensam. Agregam importâncias a coisas corriqueiras. Riem e choram com melodramas rasteiros e bobos.
E os comportamentos neuróticos e histéricos dos adolescentes? Artistas amadores que ainda não dominam a arte da representação, interpretam nervosismo com gritos e xingamentos. Os diretores não percebem ou fazem vista grossa? A massiva exposição em rede nacional transforma estes projetos deatores e atrizes em toscas celebridades e exemplos a serem seguidos por adolescentes de todo o país. Para muita gente, trata-se de moderna lavagem cerebral e covarde ataque aos autênticos costumes regionais e interioranos.
Salvas exceções, a grande maioria dos renomados novelistas não demonstra ou admite preocupação com as consequências de suas tramas diabólicas. Estes novelistas debruçam-se sobre a licença poética da ficção como justificativa para incoerências. São escritores prestigiados. Afetados pela vaidade, a soberba e não raro os demais pecados capitais. Talvez por experiência própria, estes criadores de comportamento demonstram conhecer muito bem o submundo das sensações humanas. Chafurdam nos esgotos dos sentimentos perversos para desenterrarem seus toscos personagens. Os novelistas tem poder. Assim como os marqueteiros políticos, reinventam um mundo de mentiras que, a posteriori,serão reproduzidas e assimiladas como verdade pelas parcelas incautas da população.
Exagero?
Esta é uma obra de realidade. Qualquer semelhança com a ficção não é mera coincidência.
Marcelo Coelho
segunda-feira, 7 de abril de 2014
Gato e rato
Gato e rato
Ronie Von Rosa
Martins
O gato perseguia o rato. Sempre.
Corrida de obstáculos em que o rato sempre vencia. Buracos, esquinas, saltos,
agachamentos. A frustração do felino. O rosto achatado na parede. O martelo
insensível na cabeça. A língua em
chamas. A risada que não saia. A mãe que chorava. O rato não
vencia sempre não. Encolhido ao pé da cama observava o caminhar trôpego do
homem. O pai. O poder. No chão. Esmurrada. Surrada. Os soluços da mãe. O olho
do homem no seu olho. Do rato. Gato e rato. O que fazer? Enfrentar o gato? Se
oferecer à devoração do gato. A trilha sonora. Alegre, rápida. O denso
silêncio. Espesso. Na mão do homem a garrafa. Na mão do homem o punho cerrado.
A ofensa na boca. Em cuspe e fel. Em raiva milenar. Em ignorância secular.
Impunidade atestada. “E você. Vai fazer o quê?” O gato perguntava em deboche de
voz. “Não é homem?” e o rato via o homem e achava que não queria ser homem. Ser
homem era aquilo? “Não é homem seu rato!” gritava em saliva e cachaça que
expelia em boca que mordia e consumia tudo que era bom. Ser rato era melhor que
ser homem. Fugir para a toca. Esconder-se do gato. Recusar o homem. Recusar ser
homem. A mãe gemia. E o gato chutou-lhe a barriga. A violência era
desmistificada. Pura. Cambaleou o gato. Sentou-se na cama. Sem fôlego. Correra
muito para alcançar o rato. Os ratos. Eram todos ratos. A culpa era deles. A
vida era uma merda porque eles não ajudavam. Não faziam a parte deles. Era tudo
com ele. “Eu faço a minha parte... eu faço...” olhava para o corpo da mulher no
chão. “Tu... tu não faz a tua...” apontava um dedo que era um gargalo para o
menino e gritava: “Nem tu... ratinho... infeliz ratinho... nem tu faz a tua...”
Do que falava o gato. Pensava o
garoto.
“São um atraso.” Continuava o
pai. “Um atraso pra minha vida.” Levantou-se mas caiu ajoelhado sobre o corpo
da mulher. Gritou no ouvido que já não ouvia. “Vaca!” e riu.
A risada assustava muito o
menino. Risada cheia de fantasmas seculares, fantasmas que provinham da garrafa
que dançava na mão do homem-gato-pai. O ratinho correu. Pela porta. “Vai seu
merdinha... vai pro buraco... vai pra toca...” e ria e chorava. E soluçava o
gato. O homem. O fantasma.
Agora tentava acordar a mulher.
Empurrava o corpo de um lado para o outro. “Acorda sua vaca, não finge... eu
sei que estás aí...” E então parou. A
garrafa liberta pela mão tombou primeiro. O sangue
da garrafa escorrendo ao lado da mulher. Os olhos esbugalhados. Fora
surpreendido pelo rato. Pelo martelo. Seu próprio martelo. Tentou levantar. A
embriaguez e o peso da cabeça não permitiram, tombou. Uma. Duas. Três vezes. A
mão na cabeça constatava o sangramento. O braço estendido. “Ajuda...” os olhos
do ratinho grandes e apavorados. Corpo estático. Tombou.
A criança caminhou até a tv e
apertou o botão. Fim.
quarta-feira, 2 de abril de 2014
Parados
PARADOS
RONIE
VON MARTINS
Pensar o calor. Em toda a sua vastidão.
Quase a ponto de consumirmo-nos no seu bafo, no seu hálito incandescente.
Indecente. Pensar enquanto as mãos – suadas – perdem toda a força, a vontade. O
suor é água fervente. O suor é o derretimento do espírito. De toda a
ação. Parados.
A enorme estrada congestionada de
corpos metálicos ferventes. O asfalto negro e pegajoso parece amalgamar-se aos
pneus. Tudo uma coisa só. A terra parece engolir os veículos. E o suor. Os corpos
desidratando. Rostos cansados, irritados. Nervosos estão todos. Todos presos em
seus respectivos carros. Em suas respectivas misérias. Há uma singular trilha
sonora.
Construída através do número variado deestações de rádio que vomitam suas músicas “da hora”,
juntamente com as buzinas e o burburinho das vozes humanas e dos motores.
Discurso único. Dialeto resgatado do inferno. Das profundezas do sol.
Passou a mão instintivamente pela
calvície. Trouxe-a encharcada de suor. Na bermuda tentou seca-la. Esta também
sofria os problemas do calor, e se agarrava ao corpo úmida e apertada de forma
irritantemente desconfortável. Pelo retrovisor do carro olhou para seu rosto.
As grandes sobrancelhas encharcadas serviam de represa para os rios sudoríferos
que se formavam aqui e ali e despencavam...
Pensou no texto que estava escrevendo.
O ser humano e suas complexidades. Artigo para o jornal local.
Complexidades... a vida era isso. Tinha que resistir à vida. Parado. Sempre
estivera parado. Sentado. Escrevendo. Pensando. A mulher era só uma lembrança. Olhos
claros e
vastos. Sorriso meigo, corpo vigoroso e magro. Bonita sem ser bela. O filho.
Pequeno era uma presença só quando ela, a mãe, trazia-o deSão Paulo. Fugiram. Os dois o haviam abandonado.
Letras demais. Histórias demais. Vida de menos. Sempre assim. “Amor, amor..?”
Ela perguntava quase em lamento. “Sim, eu amo. Amo, amo... te amo... mas não te
quero.” O “não te quero” era pronunciado pela primeira vez bem baixinho, quase
no tom do ponto final da sentença, depois como forma de afirmação, de exorcismo
era gritado, vomitado: “Não te quero! Não te quero mais!”
Eram as letras. As folhas e os livros.
Olhou para o número expressivo de livros e papéis no banco
de trás do
carro. Sorriu. Eram sempre eles. Não permitiam mais ninguém. As palavras eram
espectros. Vampiros que sugavam qualquer tentativa de uma vida normal.
E a estrada estava caudalosa. Pelo lado
direito, dentro de um Vectra, uma mulher nova, morena, olhos oblíquos, boca
pequena parecia aflita. O telefone na mão. Apanhou o dele. Sem sinal. Era isso.
No entanto as marcas de aflição que riscavam o rosto da mulher do Vectra eram
mais profundas que o simples dissabor de não conseguir falar com alguém. Ela
abriu a porta do carro e colocou uma das pernas para fora. Todos os filmes de
Hollywood saltaram na memória. Perna digna de muitos comentários.
Na esquerda um Gol vermelho e um rapaz
magra e indiferente. Um pote de batatas fritas e uma latinha de Coca. Comia
sofregamente, sem tirar os olhos do produto. E cada vez que chupava o
canudinho, um barulho esquisito era ouvido. O rapaz não olhava para ninguém. Só
para o pote de batatinha.
Boné preto enterrado na cabeça.
Espinhas vulcânicas sobressaindo do rosto magro, sobrancelhas ralas e pequenas.
Por um momento seus olhares se cruzaram. O rapaz sorriu. Boca amarela. Repleta
de batata. Ele virou o rosto. Estômago fraco.
Escritor. “Quero ser escritor.” Era o
que dizia quando era jovem. Lia tudo o que lhe cai nas mãos. Escrevia muito.
Muito. Achava que era bom. A maioria achava o contrário. Conseguira apenas um
emprego de fotógrafo. Fotos de miséria e morte era o que mais sabia fazer.
Esporadicamente escrevia um artigo para o jornal. Tinha algumas amizades e o
pessoal dava um “mole”.
A mulher saiu por inteiro. E no momento
que fazia isso. Todos os olhares masculinos a seguiram. Levantaram-na,
incorporaram-se ao seu corpo. Possuíram-na em forma, perfil, figura, silhueta,
imagem e mulher. Inteira. Chorosa. Chutou o pneu do carro visivelmente irritada
pela situação. Ele podia jurar ter ouvido a palavra “merda”.
As pernas longas e lindas da mulher
ainda caminhavam nos seus olhos. Pensou em puxar conversa, ser cavalheiro. E um
filete de suor escorregou da sua testa e despencou no seu nariz. E percebeu que
estava no inferno. E um calor insuportável tomou-lhe a razão. “Merda.” Saiu e
caminhou para a mulher.
O filho era lindo. Sempre queria
brincar, conversar. Mas ele não podia. Dedos presos nas teclas do computador e
olhos dominados pelas letras. “ Fala com ele Ítalo.” Dizia a mulher. “Fala com
o teu filho!” e ele fazia um afago no menino e seguia escrevendo sua obra fantástica.
Foi então que eles o deixaram.
“Acabou.” E foram para São Paulo. Ele ficava em Porto Alegre. Parado. Criando
um mundo que não era o seu?
A mulher do Vectra olhou-o. Ele não era
magro. Grandes bermudas, sandálias de couro. Barriga um pouco proeminente.
Totalmente calvo e com grandes sobrancelhas. Suando, suando muito. Antes que
ele pudesse abrir a boca para dizer algo, outro homem saltou do garro. Vomitado
pela fúria. Lata de cerveja na mão, rosto transfigurado pelo calor e
indignação. Gritava obscenidades, fazia gestos, chutava os outros carros,
mandava todo o mundo para lugares que não eram agradáveis. Tropeçou e caiu
perto do carro do rapaz das batatinhas.
O jovem quase engasgou de tanto rir,
cuspindo fragmentos pegajosos do alimento para o ar. O bêbado lenvantou-se.
Chutou a porta do carro do rapaz. Afundou a lataria. O rapaz fez outra careta
engraçada e deu outra gargalhada, zombando do homem. Este enfurecido, com um
safanão, jogou o pacote de batatas no chão. O jovem do carro agora não ria. E a
coisa esquentava.
A mulher arregalou os olhos. O pânico
estampado na boca que engolia todo o som de seu grito. Atirou-se ao peito dele,
abraçando-o com força. Ele forçou-a para o chão. Encolhidos atrás do carro dele
assistiam apavorados o rapaz encostar o cano de um enorme revólver na cabeça do
homem.
“Valentão, né... valentão...” O garoto
provocava, voz esganiçada. Mão firme e ossuda. “Valentão, né...?” “E agora
valentão... hein... e agora?”
Sob a mira do revólver, o bêbado
encolhia-se todo e gemia. As calças mijadas. O corpo trêmulo, olhos apertados
quase sentindo a dor de morrer...
Enquanto as rádios propunham outras
trilhas para a ação que se desenrolava, ele ouviu a sua própria voz pedindo
calma ao garoto, que ficasse calmo, todo mundo estava nervoso, era melhor
ficarem calmos... pro bem de todos... foi interrompido pelo grito do rapaz
mandando que calasse a boca. “Cala a boca veado!”, chutou o homem que estava a
sua frente e arrancou-lhe a carteira do bolso. O relógio. Bebeu um gole da
cerveja. Ainda gritando foi limpando os motoristas mais próximos, carteiras,
bolsas, brincos, e tudo que pudesse valer alguma coisa. Chegou perto dele e da
mulher. “Levanta bundão” levou-o até o carro. Olhou para o interior. “Só essa
merda de livro hein?” arrancou a carteira da mão. “Manda isso pra cá careca”
deu uma risada, olhou pra mulher toda encolhida, “Não adianta insistir com a
mina não seu trouxa, isso é mulher demais pro teu caminhazinho” apalpou as
nádegas da mulher que agarrou-se a ele assustada. Outros homens tentaram sair
dos carros para ajudar. Sentimento de herói. Dama indefesa, essas coisas... o
cano do revólver olhou fixamente para cada um deles e eles voltaram. Sempre
voltavam.
O calor. Todos suavam muito. Todos
tremiam muito. O rapaz corria feliz por entre os carros. Rápido, ágil, mas
feliz. Ninguém se animou a gritar. Ninguém se animou a reclamar. Estavam todos
parados. Rendidos. A mulher começou a chorar. O bêbado levantou-se mais
furioso, ia telefonar pra polícia, era amigo do deputado tal, ia dar um jeito,
que todo mundo era covarde, que “tu”, e apontava para ele. “Tu é um covarde,
deixou o meliante pegar a bunda da dona e não fez nada, Tu é um cov...” e
estatelou-se no chão novamente. A mulher o esmurrara violentamente. E como se
não bastasse chutou-lhe os testículos. Ele vomitou. E chorou. “Desprezível” foi
o que ela disse.
Ela falou sobre o marido. Político.
Deputado. Homem violento. Que o traia. Que ele suspeitava. Que tinha que estar
em casa antes dele chegar. Que ele era capaz de lhe bater. Que podia perder
tudo. Que ele podia acabar com a vida dela. E com a vida do amante. Que não
agüentava mais aquela vida. Limpou uma lágrima que se misturava ao suor. Que
era infeliz. O decote falava mais alto, tinha um discurso mais eloqüente, e
respondia todas as questões...
Escorou-se no carro e ia começar a
dizer que era escritor, intelectual, que era muito inteligente e sensível, que
apesar de não ser bonito era muito bom de cama e que adoraria fazer com ela o
que ela bem quisesse, ouviram um disparo. Depois outro. Gritaria entre os
carros, mulheres chorando, crianças correndo. Fecharam os carros e juntos com
todo resto se puseram a correr para ver o que estava acontecendo. Corriam
juntos. E o decote e as pernas da mulher pareciam ditar as regras de uma nova
trilha sonora.
Estendido a alguns metros dali estava o
rapaz das batatinhas. Um pouco mais a frente um homem gemia com a mão na
barriga. Policial, uniforme manchado de sangue. Morrendo. Indo embora daquele
inferno. O parceiro desolado escorada na viatura.
“Estavam indo para uma conferência.” Um
outro homem falava. “O guri veio correndo de arma em punho, ele ( apontou para
o moribundo) tentou pará-lo, o guri atirou, acertou ele na barriga, foi então
que o outro atirou e derrubou o moleque. Fim.
Eles aproximaram do policial
sobrevivente. “Qual o motivo do engarrafamento?” “Acidente, um cara bateu em um
caminhão.”
Ele e a mulher olharam-se e continuaram
caminhando. Não havia nada para fazer. Todo o mundo caminhava entre os carros,
conversavam... Brigavam.
Ele pensou no seu artigo sobre as
complexidades do ser humano... o decote e as pernas da mulher ultrapassaram-no
alguns passos, e lê pode conferir a exuberância do corpo inteiro da fêmea que o
acompanhava. Complexidades.
Tomou fôlego. Ia dizer que era
escritor, sensível, intelect... A mulher já corria, passos largos. Na frente
enfermeiros, policiais, equipe de salvamento... Ele estava exausto. Tentou
acompanhar a mulher. Tentaram impedi-la de aproximar-se. Ela falou algo. Foi
permitida sua presença. Foi então que ele ouviu a gargalhada. Uma longa
gargalhada, misto de dor, angústia e alívio. Caiu ajoelhada junto ao carro em
pedaços. Levantou-se novamente e com passos firmes seguiu caminho. Sem olhar
para trás.
Ele correu até a equipe de resgate e
socorro. Fez perguntas, gesticulou, e enquanto observava atônito o corpo
ondulante da mulher perder-se entre as filas de carro e pessoas, um dos
policiais apontava para o acidente e dizia: “O marido dela.”
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