Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

terça-feira, 18 de junho de 2013

O menino a chave e o cofre



Uma pequena. Chave de abrir pequenas coisas. Armários, caixas, memórias...
E de papel. O coração da infância. Vetusto coração infantil. Ainda lembrava? Do olho, do cabelo? Não importava. Agora já não importavam os detalhes. Importava o gosto bom. Da infância. O tempo de sofrer e sentir com força. Toda a força do mundo. Tempo de olho brilhante. De coração sensível às cores de todas as sensações.

Lembrava de alguma coisa. Pela fenda que o tempo algumas vezes abria. Voltava. Corria para o passado. Não como fuga. Mas como força. Escorria pelos buracos do passado e lá. Com a chavezinha abria as portas da infância. E voltava guri. Sorrindo.

E lá estava ela.  A menina. Já indefinida. Esfumaçada. Mas ainda bela. Juntos. Carta no cofre. Pequeno cofrinho vermelho. A carta. Rabiscos. Riscos. Emoções em estado primário. Época de cheiros e gostos latentes. Suco de laranja. Melancia, sorvete. Cheiro de terra molhada, de pão feito em casa. Tudo ali. No cofrinho. Guardados. Preservados. Esquecidos?
Nunca. Havia sempre um olhar fugidio pelas ruas. Reconstrução dela. A menina. Cabelos aqui. Um sorriso ali. Os olhos. Nos olhos ele morria. Guri. Perdia a noção do real. Rosto vermelho. Palavras amontoadas que se precipitavam da boca. Gaguejar. Sorriso de bobo. Quando lembrava essas sensações sentia o gosto de picolé-Minissaia. Chocolate e morango.
Até a buzina ouvia. Dentro dos olhos que não via mais. A buzinada, o gosto, a vida.
Os nomes escritos em letras grandes e trêmulas.
E a chave. Em sua mão. O sorriso dela. Era o guardião do segredo. Ele. O senhor do cofre. O coração de papel. Também ele. Guardado. Protegido.
E então o tempo. Vasto e interrupto. E as distâncias. E as outras coisas todas. Tudo se interpondo. Obstáculos. O paladar já não era o mesmo.
Os olhos de não ver infâncias. Quando observava suas fotos atuais, percebia o olho morto do adulto. Olho sem brilho. Olho de ver tudo e nada. Sombrio olho de realidades postas. Na memória o olho brilhava. Cintilava com a intensidade do coração. A estranha sensação da outra mão na sua. A chave. O segredo da infância. Para sempre. A menina sorrindo... se esvaindo em lembranças imprecisas.
O que mais cabia no cofre? O que mais cabia nele mesmo?
Onde andaria a chave? Esquecera. Perdera. Ou jogara fora? Não sabia mais. O que sabia?
Sabia que não era criança. Pretendia. Queria voltar. Subir nas árvores. Tomar banho de chuva. Queria identificar por inteiro o rosto da menininha que brincava de confundir-lhe. Como seria hoje. O tempo...

Os lugares da infância. Não se atrevia mais. Devia estar em um deles. Mas ficaria por lá. Espaços para não-adultos. Cheios de mágica e segredos. O corpo adulto não entenderia. Lugares de aventuras e sensações originais. Lugar de monstros e fadas e demônios. E heróis e amores... 
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Ronie Von Rosa Martins - Professor de Língua Portuguesa

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