Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Conversa no ônibus






Um sorriso era a tentativa de não ser rude. Artimanha para ludibriar a situação. Como se esta fosse suscetível a qualquer artimanha. Fato. Ato. É isso que é. Tempo também. Pois que se esvai, desgasta e acaba. Morre. Não o sorriso. As poucas palavras que não dizem. Pretendem o silêncio, mas que não são entendidas. Confundidas com acenos e afagos a outras tantas palavras que deságuam, derramam... e inundam.
O ambiente é o ônibus. E sacode como todo ônibus. E isso é bom. Deslocamento do corpo, dos órgãos, das palavras, das idéias. E os rostos e os corpos todos. E os silêncios que se fazem das bocas e as bocas que murmuram seus silêncios indiscretos.
O pensamento é o maior passageiro de qualquer ônibus. Sobre os corpos. Através dos corpos. Palavras em idéias e textos que se enroscam silenciosamente nas carnes. As vezes sufocam. É por isso que o ônibus sacoleja. Salta. Atira os corpos para cima e para os lados. E quando fica vazio. Sobra nele ainda vestígios perdidos de pensamentos. Pedaços de todos.
Mas a conversa é diferente. A conversa é uma força. Um poder que se sobressai, que é infringido sem dó aos passageiros que não gostam da conversa. Falar.
Existem aqueles que preferem ouvir. Em silêncio constituem textos enormes. Colcha de retalhos de todos os outros textos. Ouvir. Se deixar atravessar pelos discursos alheios. Ser um espaço liso por onde a fala desliza e flui. Mas conversar é ser estrato.  É ser coisa. Coisa que obstrui, retém e devolve. Devolve energia, impulso, força e no caso fala. E falar sem pretender falar é agressão. É violência. Contra quem não quer falar e contra o interlocutor.
Falar é jogar palavras, oferecer palavras sem cuidado, sem tato e  sem paixão. Falar. Proferir palavras. Conversar. Costurar assuntos, pontuar idéias. Curiosidades resolvidas. Banalidades construídas.
Ritual. Todo ritual é sagrado. Mesmo que não façamos nossa essa crença. Respeito. Tradição. Navegar no mesmo rio, cordialidade. Simpatia. Eis o sorriso. O consentimento da cabeça. “Sim..., claro... é...” confirmações, consentimentos. A conversa ali e o pensamento lá. Este analisando de forma acadêmica e técnica a conversa. Pensamento que destrincha desconstói e acaba silenciosamente a conversa. E há o hálito. Álcool. E há a vida e as dores e os parentes, e as dívidas... E há o mundo.
Mas você não quer o mundo. Você quer o silêncio e a criação de um outro mundo. Não este que corre fora do ônibus ou este que é expelido pela boca do interlocutor. Não. Este mundo é o seu mundo. É a sua terra. Seu buraco. Seu túmulo. Este discurso é a tua redução, teu resumo. Limitação e constatação.
É então que ela pergunta sobre o livro que tentavas ler. Carrol. Você diz. Alice. País das maravilhas. Ela fica te observando e se cala.
Você acha que está tudo resolvido... mas ela volta: “Essa cartola está fora de moda.”
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Ronie Von Rosa Martins


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