Escrever?

"Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga" (Gilles Deleuze)

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Velhos na esquina



Ser velho era uma coisa interessante... Pensava. Buscava formas de justificar, amenizar certas contrariedades, certos... ou incertos pensamentos?
Ser velho era uma merda. Ponto final. Levantou da cama seus oitenta anos. Sim. Ainda conseguia fazer isso. Era “danado” como dizia a neta. “ O vô é danado de forte.” Mas não era. Forte. Não era forte. Era insistente. Insistia com a vida. Só pra contrariar a morte. As duas amantes ciumentas.
Gostava de deixar a outra enlouquecida. Enciumada. Sorria com as dores e tosses e rugas que indefiniam seu corpo. Corpo insistente.
Levantava e ainda de pijamas abria uma janela. Para um grande muro. Alto. Tijolo a vista. E dizia a frase: “Mas que merda!” e sorria satisfeito com a afronta. Fechava a janela e vestia-se. Gemidos e palavrões revestiam todo o ato de se recompor socialmente. Vestimenta e máscara. Xingava, ofendia, as vezes até alguns gazes de odor duvidoso eram percebidos no quarto. Depois saia para o resto da casa. Sorriso enrugado no rosto.   Costas arqueadas para o café. Preto e quente. “- Vai fazer mal pai...” e ele colocava outra colher de café, mais forte, mais amargo, mais letal. E sorria. Sorriso de afronta aos cuidados todos.
A mulher do filho nem levantava o rosto. Contrariada. O corpo velho sentado à mesa não pertencia a família dela. Não queria, não precisava de tudo aquilo. Ele ouvia ela reclamar para o filho. Achava que a mulher tinha razão. Se fosse com ele... pensava. Mas fazer o quê? E então peidava estridente. O olho brilhante na direção da mulher que se levantava brandindo raiva e indignação e se afastava da mesa. O filho. Um olhar repreendedor. “- Escapou... sabe como é... oitenta...” e a neta repetia a frase. “- O vô é danado...” olhos sorrindo.
Depois era a rua e o sol. Quando era jovem não dava importância para o sol. Não como dava agora.  Sentava em silêncio em um banco e deixava o sol carregar as velhas baterias do corpo. “Sai do sol... pai...”  tinha vontade de levantar a mão e mostrar o dedo ossudo e ameaçador ao filho, mas agora os papéis estavam invertidos. Isso ele também nunca imaginou. Agora era a criança. Às vezes até fraldas tinha que usar. Então levantava e saia. A manhã era longa e ele buscaria abrigo nas vetustas palavras da velharia que ainda resistia.
Havia um itinerário pré-definido até chegar ao ponto final, onde ele encontrava mais cinco anciões. E sentados na esquina da quitanda do Seu Renegado, acabaram estimulando a imaginação e criatividade da população que carinhosamente denominava a esquina de “A esquina do pinto morto.” É claro que ninguém dizia nada para os nobres velhinhos, mas todos já se referiam ao lugar pelo apelido. “- Você sabia que o carro do seu Germano bateu na bicicleta do Seu Etário bem na esquina do Pinto Morto?” “ Na madruga a policia teve que separar uma briga de borrachos bem ali na esquina do Pinto Morto”.
Algumas crianças tentavam descobrir o motivo do apelido dado ao lugar; atropelamento de pintinhos, ovos estragados, essas coisas. Os pais sorriam e “enrolavam” as crianças que logo iam encher o saco dos velhotes.
O mais velho era o mais chato e bêbado. Dizia que já tinha morrido e tinham esquecido dele, então ... pro diabo! Emborcava um copo de cachaça azulada e ardente. E fazia uma careta horrível. O silencio dos dentes que faltavam eram compensados com a língua ferina dos olhos amendoados e libidinosos.
Um deles só dormia. Fechava os olhos e roncava. Algumas vezes recebia um tapa na perna e acordava sobressaltado mandando todos à merda. Riam com dentes gastos e risadas que atravessavam as gerações. Eram crianças. Guris. Jovens. Com todas as dores, todas as rugas e todas as “molezas” do corpo. Gargalhavam alto e se engasgavam... e continuavam rindo. Em uma dessas risadas o mais velho e mais bêbado foi encontrado - finalmente-  e levado. A esquina foi abandonada e ninguém mais viu todos eles juntos. Separados agora. Tinham decidido. Já não era a mesma coisa.
Certa vez encontrou o que dormia. No hospital. Deitado em uma maca, olhos arregalados e assustados. Acordado. Muito acordado. Medo de dormir e nunca mais... Apertou a mão do amigo. Um sorriso. E foi embora. Decidiu que quando a coisa chegasse não ficaria com aqueles olhos arregalados. Que fosse pra puta que pariu. Se quisesse dormir dormiria, pegaria ele dormindo, sem esforço, mas sem graça também. Ela gostava de luta, de desespero. Seria frustrante pra Ela. Não alimentaria aquela puta com seu medo.
Decidido. Acertado. As costas doíam. Parou um pouco e ponderou: Porque não estava chorando pelo amigo? Lágrimas? Sorriu todas as rugas. Seco. Não havia água em seu deserto particular. Decidiu isso também. Essas coisas... essas frescuras... Seguiu caminhando. Mais um peido. Fedido. Em homenagem aos amigos.
Em uma dessas caminhadas perdeu-se. A cidade de repente pareceu mudar, as ruas mudaram o rumo, direção... As pessoas já não eram conhecidas, nem casas nem nada. E o filho o encontrou e o colocou no quarto. Televisão e cama limpa. Um despertador e um chinelo felpudo.
Deitou na cama. Sorriu. Quando Ela apareceu deu mais um peido. Peido de desobediência e insubordinação. Sorriu. Antes de ir teve a feliz sensação de uma ereção.


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